terça-feira, 31 de julho de 2012

Capítulo 2 - Êxtase


          Observo as estrelas que brilham no teto do meu quarto. Eu devia ter sete anos quando ajudei meu pai a colocá-las. Elas já estão desbotadas, mas eu não poderia retirá-las. Elas sempre representaram a calma e o conforto do meu quarto. Sempre me trouxeram a paz. Mas agora já não parecem mais tão eficazes, porque embora o dia já comece a amanhecer, e eu já esteja deitada há mais de duas horas, não consigo dormir. E imagino que os meus níveis de adrenalina estejam muito acima do limite da normalidade.

            Todos sabem que é o processo da mudança de idade e não o dia simbólico da mudança em si que muda a vida de uma pessoa, mas comigo aconteceu o contrário. Nunca pensei que as coisas ainda estariam mais loucas quando eu saísse do banheiro, mas talvez inconscientemente eu soubesse, por isso, mesmo após ter refeito mentalmente todos os fatos que me levaram até aquele assento de banheiro, e ter me recomposto, ainda permaneci sentada vasculhando a minha mente e tentando interpretar tudo o que havia acontecido.

            Eu mal fechava os olhos e ainda podia sentir sua forte mão contra os meus lábios, ela estava firme, mas não me machucava, e agora eu me arrependia de não tê-las beijado, embora esses pensamentos tenham realmente me surpreendido. Ainda podia sentir o seu corpo tão próximo ao meu que podia perceber todos os seus contornos e a tensão dos seus músculos contraídos em alerta. A sua respiração quente contra a minha orelha enquanto com uma habilidade assombrosa atirava contra a vida de outra pessoa.

            Quem era ele? E quem fora a vítima? Como alguém com aquele sorriso e aqueles olhos poderia matar alguém? Mas na verdade ele me defendera. Ele salvara a minha vida? E quem poderia querer a minha morte? Eu acho que com recém-completados dezessete anos ninguém pode ter inimigos que possam querê-la morta.

            Esses pensamentos permaneceram na minha mente por um longo tempo, até que ouvi um grito agudo surgir do salão, calando instantaneamente o som que provinha das caixas do DJ. Vozes pareciam desesperadas, olhei-me no espelho, joguei os lenços de papel, guardei minhas maquiagens que estavam espalhadas na pia e saí, deparando-me com o caos.



            As luzes haviam sido acesas, e era estranho ver todos aqueles rostos cansados e abatidos, algumas meninas estavam com a maquiagem borrada e os cabelos suados de tanto dançarem. Os garotos não perdiam, também pareciam fatigados. Mas o que me surpreendia naqueles rostos antes conhecidos era a intensidade de suas emoções. Alguns rostos pareciam apenas curiosos, de terem acendido as luzes do salão subitamente, outros pareciam ainda chateados por terem lhes interrompido o divertimento, mas a maioria parecia crianças assustadas, alguns já ligando para os seus pais, ou talvez para a polícia. Os seguranças já cercavam o local em que estivera o homem com a arma apontada para mim.

Havia alguns curiosos que eram afastados e alguns choravam em desespero. Uma menina que reconheci como sendo Thaís chorava com as mãos ensangüentadas, amparada por Pedro que tentava se controlar para não fazer o mesmo. Ela gritava e chorava, olhando para suas mãos em pânico, dizendo coisas sem sentido, sendo que eu entendia principalmente “Ai, Meu Deus! Ele está morto!”. Eu não queria me meter, mas eu era a responsável pela festa e me aproximei. Não sabia como me comportar, não poderia estar muito nervosa nem muito calma, mas antes que pudesse me aproximar dos seguranças, alguém me puxou e me abraçou.

__Meu Deus, Manu! Você está bem? Eu te procurei por toda a parte. Como você está? Aconteceu alguma coisa com você? __Perguntou Marcelo com seu olhar procurando qualquer indício de nervosismo ou desespero no meu. Ele me puxou novamente para um abraço apertado e alisou os meus cabelos. __Você não imagina o quanto eu estive desesperado procurando você. Você já soube o que aconteceu? __Disse ele me distanciando do seu abraço para ler o meu rosto.

__Não. __Menti.__ O que houve? Eu só estava no banheiro, e ouvi gritos. O que houve com a Thaís? Eu vou falar com ela.

__Não, é melhor você não se envolver nisso. A polícia já está chegando. Pelo que eu entendi, ela estava com aquele cara que está ali com ela quando viu um cara caído no chão. Muita gente já havia visto o cara, mas acharam que fosse um bêbado que tinha caído no chão, sei lá. Ele podia ter trazido álcool escondido e conseguiu passar pela segurança com a bebida. __ “E com uma arma”. Comentei mentalmente. “E ele não foi o único.” __Todo mundo ignorou ele, mas ela quis ajudá-lo, e quando pegou no peito dele, para tentar acordá-lo sentiu alguma coisa molhada, ela levantou as mãos e viu que era sangue. Imagina, ela surtou. Foi ela que gritou. E agora ninguém nem sabe quem é o cara. Pelo menos não é ninguém da nossa escola.

__Meu Deus! Como isso pode ter acontecido?! __Exclamei fingindo surpresa, mas realmente comovida pela situação da Thaís, cuja aflição era totalmente justificada.

__Eu não sei.  Os seguranças disseram que parece ter sido uma lesão por arma de fogo, e não arma branca. Como alguém pode ter atirado em outra pessoa no meio da festa e ninguém ter percebido?

__E os meus pais? Eles já sabem? __Mudei de assunto, fazendo perguntas das quais eu ainda não tinha as respostas.

__Sim. O chefe da segurança ligou para o seu pai, e ele já está vindo. __Ele ainda me abraçava quando confessou. __Eu não devia ter ficado longe de você em nenhum momento da festa. Eu não me perdoaria se algo de ruim tivesse acontecido com você. __E apenas para mim eu comentei que ele estava certo, se ele não tivesse saído de perto de mim nada disso teria acontecido, ninguém teria morrido. Ou talvez tudo pudesse ser muito pior. E quem estaria morta seria eu. E perdida nesses pensamentos, senti sua mão no meu rosto, e não pude deixar de perceber que sua mão não era tão firme e quente quanto uma que me tocara há poucos instantes. Ela levantou o meu queixo, e antes que eu pudesse mergulhar no oceano daqueles plácidos olhos azuis, senti sua boca contra a minha, e por puro egoísmo, senti minha vida começar, enquanto outra se findava.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Capítulo 1 - Lampejo (parte 3)


           Ele estava vestido de preto, com um casaco escuro sobre uma camiseta e calças da mesma cor. A luz era mais clara no bar, embora ele estivesse sentado numa parte escura, mas mesmo assim eu me esforçava para analisá-lo. Eu o vi brincar distraidamente com um copo de uísque (mas que deveria ser refrigerante, uma vez que a distribuição de álcool era proibida na minha festa), e eu podia até imaginar o barulho dos cubos de gelo contra as paredes de vidro do copo.

Os seus cabelos pretos eram curtos, no entanto o pouco da sua franja caía sobre os seus olhos que passeavam pela multidão. Ele tomou mais um gole, e engoliu alguns cubos de gelo, virando-se um pouco para o lado do DJ, que era onde eu me encontrava, me permitindo ver melhor seu rosto, enquanto eu tentava divisá-lo por entre as pessoas que passavam entre nós.

Poderia ser descrito como um rosto comum, exceto pela harmonia dos seus traços, quase geométricos, e o ar misterioso de sua expressão. Os olhos pareciam escuros, emoldurados por sobrancelhas negras e marcadas que lhe davam uma expressão de quem prefere observar a ser observado. O seu olhar sério percorria o salão desinteressadamente, e eu poderia dizer que por menos de um milissegundo ele me percebera, o que fez uma descarga elétrica percorrer o meu corpo. Seu nariz era reto e harmônico com o formato do seu rosto. Sua boca era bonita, e eu podia ver a força do seu maxilar enquanto mastigava os cubos de gelo.

            Ele se voltou para o bar, logo que vi seu pomo de adão se movimentar enquanto deglutia os cubos triturados, sendo servido novamente pelo barman, que parecia frustrado por Esther não ter ido pegar seu drinque, e ainda permanecia ao meu lado. Vendo que as outras garotas estavam distraídas e discutindo entre si os pretendentes, sussurrei para Esther, tendo minha voz abafada pela música.

            __E aquele cara que está sendo servido pelo barman? __Sugeri me sentindo tremer. Confessar meu interesse por ele em voz alta me fez estremecer, como se ele pudesse me ouvir através de todo o barulho do salão. Ela começou a analisá-lo desde os sapatos que pareciam ser de alta qualidade, até os fios de cabelo que ainda caíam sobre seus olhos. Era possível que ela lesse até a sua alma com aquele olhar tão penetrante, e senti até um pouco de ciúme, quando percebi que seria só ela querer, ele seria dela.

            Depois de alguns segundos de silêncio, ela assentiu com a cabeça e murmurou:

            __Tudo bem. Você poderia entregar isso para o barman? __Pediu me entregando um cartão cor-de-rosa com seu telefone. Senti-me receosa, mas ela já tinha dezoito anos, não podia impedi-la. E ela estava me ajudando a conseguir o Marcelo, embora eu já não estivesse tão certa de que era ele quem eu queria.

            Distanciei-me das garotas que pareceram surpresas ao ver que eu já havia escolhido a minha vítima. Elas deram gritinhos de excitação, mas logo ouvi Esther as reprimindo.

            __Parem de olhar. Pelo menos disfarcem. Isso não é tão fácil quanto parece. __E ao olhar para trás vi que elas relutantemente não olhavam mais para mim.

            Sentei-me ao balcão, num banco ao lado do dele. Não o encarei, mas pude sentir seu olhar perfurando a minha alma. Entreguei o cartão cor-de-rosa ao barman, e ele logo sorriu olhando para Esther e me entregando um refrigerante numa taça. Ainda sentindo o olhar do meu vizinho, me virei, e olhei no fundo dos seus olhos incrivelmente negros, e me esforcei para sorrir, embora eu não saiba que expressão meu rosto conseguiu formar. Eu me senti tremer por inteira, e nunca aquele salão estivera tão frio, enquanto os meus músculos davam espasmos de desespero.

            Ele sorriu de volta, e eu mal pude me segurar no meu assento. Era o sorriso mais lindo que eu já vira. Era quase como uma placa de Seja bem-vindo numa casa de campo com um belo jardim. Eu sorri timidamente de volta, um pouco mais segura, e tentei pronunciar alguma palavra, mas elas relutavam em sair.

            __Boa noite. Eu não sei se você me conhece. Eu sou a Manuela. ­­__Consegui dizer com meu melhor sorriso, que jamais se equipararia ao dele, ainda fixo em seu rosto.

            __Manuela... __Disse ele lentamente, como se experimentasse cada sílaba do meu nome. __Você deve ser a aniversariante, então. Parabéns.

            Ele não pegou nem ao menos na minha mão para me cumprimentar. Mas eu não me importei. Agradeci ao barman que reenchia minha taça, a qual eu nem ao menos sentira se esvaziar, e vi que enchia o copo de uísque dele com o mesmo refrigerante. Eu recomecei a tomar a minha bebida, desejando que Marcelo me procurasse logo e já ficasse com ciúmes. Eu só queria sair dali. Realmente não fora uma boa idéia ir falar com um completo desconhecido, só para fazer ciúmes para um garoto que nem ao menos me procurava, foi quando percebi Bianca dançando com o Alexandre e me perguntei onde Marcelo estaria.

            __Desculpa, esqueci de me apresentar. __Ele continuou com sua voz firme e convidativa retirando-me dos meus devaneios, com o seu rosto antes desinteressado parecendo me avaliar. __Eu sou Dan.

            __Dan? De Daniel? __Perguntei, tentando encarar novamente seu olhar intenso.

            __Algo do tipo. __Disse ele sorrindo de uma piada que não entendi. __Quantos anos? __Continuou ele.

            __Dezessete. __Respondi enquanto congelava ao encontrar o olhar irritado de Marcelo que comprovando a teoria de Esther me procurara, mas logo saiu do meu campo de vista parecendo aborrecido. Fiquei em dúvida se esse método estava realmente funcionando. Agora ele poderia ficar com a Bianca só para se vingar.

            __É uma boa idade. __Continuou. __ Você já deve estar se formando. Já sabe que faculdade quer cursar? __Agora eu podia perceber que não era apenas eu que vasculhava o ambiente ao redor, no entanto ele tinha um surpreendente método de fazer isso. Embora mantivesse o olhar em mim, podia ver por poucos segundos seus olhos desfocarem e percorrerem o salão.

Eu o analisava quando o vi subitamente ficar tenso, apenas pelas suas veias que saltavam em sua mão que segurava o copo, embora sua face parecesse calma, e sua conversa banal. Eu me perguntei o que poderia estar causando aquela tensão. Talvez eu estivesse o incomodando, embora ele tentasse manter a conversa.

            Ele era extremamente cativante, mas algo em sua expressão começava a me assustar. O barman agora estava na outra ponta do bar atendendo Bianca e seu novo acompanhante, Alexandre, e me vi sozinha com Dan. Eu já havia conseguido o que queria. O Marcelo já tinha me visto e nem ao menos estava mais com a Bianca. Decidi me levantar, e queria sair dali. Ele fez o mesmo automaticamente, enquanto seu copo ainda batia ritmicamente no balcão por ter sido solto tão inesperadamente. Tentei ir embora, mas não pude. Talvez o perigo que parecia ir surgindo me impedisse de sair, ou talvez fossem os seus olhos que começavam a ficar tensos também e me observavam com cuidado. Ou ainda suas mãos que pareciam tão grandes pensas no seu corpo. Ou seus cabelos que caíam desleixadamente sobre seus olhos, contrastando com o resto do corpo em total alerta.

            __Eu ainda não sei ao certo... Eu pensei em...__Tentei recomeçar a conversa, embora ambos estivéssemos em pé e surpreendentemente alertas, prontos para o pior, quando o ouvi dizer com uma voz que não parecia tão calma e simpática quanto a que usara anteriormente.

            __Afaste-se.__ Falou imperiosamente, enquanto me afastou um pouco com a mão. Eu não entendi. Então realmente era eu que o irritava, já que ele me pedia para ir embora tão grosseiramente. Eu me senti uma verdadeira idiota. Estava fazendo papel de ridícula no meu próprio aniversário. Na minha grande noite. Não tinha nem coragem de encarar o seu rosto, tinha medo de encontrar um olhar de desprezo ou mesmo de escárnio.

Encarei envergonhada suas mãos, quando as vi rapidamente se moverem, uma delas pegando de dentro do seu casaco um objeto que eu não reconheci imediatamente, até ver que era uma arma. Eu nem ao menos tive tempo de pensar que ele me mataria apenas e puramente por tê-lo incomodado, e nem ao menos lamentar a minha morte precoce aos dezessete anos, com tantos sonhos a serem realizados, tantos momentos e experiências ainda a serem vividas, porque assim que vi a arma, logo encontrando os olhos aguçados de Dan, senti sua mão cobrindo minha boca, ao mesmo tempo em que me puxava e abraçava de costas contra ele.

E via num lampejo sua outra mão apontar uma arma escura contra um homem que nunca vira antes que parecia segurar uma arma também, no entanto esta parecia apontada contra mim. No entanto, se a intenção dele era me matar, não conseguiu, porque, sem nenhum ruído, vi seu corpo tombar ao chão, enquanto todos os convidados ao redor se distanciaram, achando se tratar de um bêbado inconveniente.

Foi então, que ainda com meu grito calado por sua mão, o ouvi sussurrar no meu ouvido:

__Vá para o banheiro. E não saia de lá até que tudo tenha se acalmado. E não olhe para trás.


E então eu obedeci.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Capítulo 1 - Lampejo (parte 2)



Dezessete anos não é uma grande idade, um marco na vida de qualquer adolescente. No entanto, era o meu aniversário, e ele não existe sem festa. E o melhor era que finalmente ele não seria comemorado na área externa da minha casa, com convidados dos meus pais que eu nem ao menos conhecia, mas que sempre insistiam em comentar o quanto eu crescera, embora eu nunca lembrasse tê-los visto anteriormente.

 Seria numa danceteria, com convidados escolhidos por mim. Apesar de esse ter sido um grande problema. Quem convidar para o seu aniversário quando você não tem amigos realmente próximos? Que tal todo o corpo estudantil da sua escola? Pelo menos do último ano, do qual faço parte? E eles jamais recusariam um convite meu. Não me pergunte o porquê. Nem ao menos pela minha situação financeira, uma vez que a maioria deles são igualmente ricos.

E então, depois de um dia de princesa, dividida entre cuidados de salão de beleza, telefonemas de colegas que agradeciam o convite para a minha festa na danceteria mais badalada da cidade e confirmavam sua presença, ao mesmo tempo em que perguntavam se poderiam levar outros convidados, o que meu pai proibira, mas que eu permitia diligentemente, além de presentes e telefonemas carinhosos do meu pai e a companhia constante da minha mãe, analisando cada cor e textura de maquiagem sugerida pelas funcionárias do salão, me vi rodeada de alunos da minha escola e pessoas desconhecidas, mas que pareciam divertidas e bonitas, e nenhuma delas comentou o quanto eu crescera. O que já era um ponto a meu favor.

E eu estava pronta para arrasar. Quando você passa o dia do seu aniversário inteiro no salão, sendo depilada, feita limpeza de pele, manicure e pedicure, e sessões pesadas de maquiagem e cuidados do cabelo, o mínimo que se espera é que você esteja pronta para arrasar na sua grande noite. E assim eu estava, com meu microvestido prateado e pregueado na saia, que fez minha mãe calar um impulso de reprovação, dizendo que tudo bem, pois eram dezessete anos. Eu tive que rir com esse comentário, e contive minhas lágrimas, quando ela me abraçou chorando e dizendo o quanto eu estava parecida com ela na juventude. O que foi o melhor elogio que já recebi, uma vez que minha mãe até hoje em dia é incrivelmente linda.

Segura nos meus saltos agulha de 10 cm, com minha bolsa prateada com correntes combinando com meu brinco comprido que se confundia com meus cabelos soltos e esvoaçantes e meu singelo colar prateado, que meu pai me entregara, assim que acordei, para me dar os parabéns, e que pertencera à minha avó já falecida, entrei no salão.

Era um bonito salão, com ares de modernidade para uma cidade mediana, com aparatos eletrônicos e luminosos coloridos, contrastando com a estrutura escura e metálica do chão e das paredes. Era um prédio de dois andares, em que o segundo andar funciona como uma espécie de sacada e área vip de onde você podia olhar o movimento no salão embaixo, que geralmente se concentrava ao redor do bar, situado no meio para evitar que os jovens se intimidassem de se aproximar da pista de dança. Normalmente funcionava como ponto de encontro para os jovens da cidade nos fins de semana, que dançavam, namoravam e se divertiam com os amigos. Mas meu pai o alugara para minha festa. O que não foi uma grande diferença, uma vez que a maioria que estava ali já o freqüentava normalmente.

Eu estava no segundo andar, e descendo as escadas, contra minha vontade, pois não queria parecer uma debutante, me deparei com o salão lotado. Não, não ficou tudo em absoluto silêncio, embora o DJ tivesse parado a música para a minha entrada e ninguém precisou conter um grito de admiração, embora eu tenha olhado bem para o Marcelo, o qual eu estava procurando com o olhar desde que entrara no salão, para ver se ele faria isso. E ele não o fez. E eles não bateram palmas, embora tenham começado a cantar parabéns, o que me deixou realmente embaraçada.

Fui recebida pelas garotas da minha sala, que pude reconhecer, após meus olhos terem se acostumado à meia-luz do salão. Talvez eu pudesse considerá-las minhas amigas, uma vez que visitávamos umas as casas das outras, fazíamos trabalhos juntas, apesar de não trocarmos confissões. Embora elas já tivessem percebido o meu interesse no Marcelo. E aquela era a minha noite, todos ali eram meus convidados, e me dei ao luxo de considerá-los meus amigos.

Recebi o abraço de todos. E muitos trouxeram até presentes que entreguei para os organizadores da festa para que os guardassem. O Marcelo não demorou em vir me cumprimentar, com beijos demorados e incrivelmente desconcertantes em cada lado da face, me entregando uma singela embalagem, que me contive para não abrir ali mesmo, algo que não fizera com nenhum outro presente. Tentando timidamente encontrar seus olhos profundamente azuis, percebi admirada uma leve insegurança naquele olhar sempre tão determinado.

Conversamos sobre qualquer coisa que não consigo recordar. Talvez sobre a escola, e o último mês do último ano letivo que se iniciava, ou sobre a festa, e como ter trazido um DJ de fora havia sido uma excelente idéia, pois ele era ótimo. Eu não sei ao certo, só sei que sorríamos constantemente, e pelo menos durante três vezes ele tocou em mim, na minha mão, no meu braço, entretanto a fila de convidados que ainda me cumprimentariam se avolumava atrás de nós, e ele se despediu prometendo me procurar depois. Algo que ele não fez, pelo menos não antes de eu fazer uma grande besteira.

As meninas me rodeavam e elogiavam. Muitas pessoas adorariam estar nessa posição, mas eu nunca gostara muito de ser o centro de tudo, e já me cansava de sorrir humildemente negando a magnitude dos elogios. A festa estava cada vez melhor, e nem mesmo pude me impedir de dançar. Alguns garotos ainda se aproximaram, mas eu não tinha olhos para garotos. Exceto um.

Martha, uma das mais divertidas e espontâneas das minhas colegas, logo percebeu a direção dos meus olhares nervosos, enquanto eu disfarçava sorrindo.

            __Eu não acredito. __Exclamou ela com descrença, para que todas as demais quatro garotas do círculo pudessem escutar, me olhando espantada com seus olhos muito escuros.

            __O que foi? __Perguntou Bárbara, com seus olhos verdes em alerta, que embora parecessem tão inocentes nas suas sessões de fotos como modelo, eram curiosos assim como ela, que jamais perderia tal comentário sem saber de toda a história imediatamente.

            __Olha isso. __Continuou Martha, olhando para Marcelo e falando pausadamente, sabendo que já conquistara a atenção de todas as garotas, o que sempre conseguia por seu ar de liderança, embora à primeira vista muitas vezes passasse despercebida. __ A Bianca dando em cima descaradamente do Marcelo. Meu Deus, que horror! Ela pode ser mais oferecida?

            __Ele não parece estar achando muito ruim. __Retorquiu Luana, com seu olhar calmo enquanto observava Marcelo e Bianca, uma garota que aparentava muito mais que seus dezoito anos, tanto por seu corpo cheio de curvas, quanto por suas roupas provocantes, dançarem tão próximos que não passaria uma alma entre eles.

            __E daí?__Contrapôs Martha com um olhar fuzilante e repreendedor para Luana, que assustou até a mim. __Hoje é o aniversário da Manu, e todo mundo sabe que ela gosta do Marcelo. E que era para eles finalmente ficarem hoje.

            __Todo mundo sabe?! __Perguntei entrando em desespero. __Assim eu me sinto muito pior. __Confessei não mais tentando disfarçar o meu desapontamento.

            __Desculpa, Manu. Foi modo de falar. É claro que só nós, suas amigas, sabemos que você gosta dele. E é claro que vamos fazer de tudo para vocês ficarem hoje. Não importa que tenhamos que passar por cima da Bianca, mesmo com aquela comissão de frente enorme dela.

            __Não, Martha. Não precisa. Se ele não gosta de mim, eu não posso fazer nada. Ele gosta da Bianca e pronto. Não quero separá-los. __Concluí contendo minhas lágrimas e me repreendendo por ter alimentado tantas esperanças para essa noite.

            __Eles só estão juntos essa noite. Eles nem se gostam. A Bianca não fica com um cara por mais que uma noite. __Comentou Thaís, que se mantivera timidamente no círculo, embora não conhecesse bem as meninas, e só agora tivera coragem para fazer um comentário. Ela fugia ao padrão de beleza do grupo de meninas ao redor, magras e altas com ares de modelo, não deixando de ser bonita com sua tez morena, assim como olhos e cabelos, e seus poucos quilos acima da média.

            __Pois é. __Comentou Martha, após ter passado alguns milissegundos tentando reconhecer quem falara e entender o que aquela garota estava fazendo no seu círculo, sem sucesso. E como ela tivesse aumentado seu arsenal de argumentos, concordou. __E você, Manu, gosta dele desde sempre. E está linda hoje.

            __Você devia ir lá falar com ele. __Sugeriu Bárbara finalizando.

            __É mesmo. __Concordou Martha, usando seu olhar persuasivo para me convencer.  __A festa é sua. Você podia até mesmo expulsar a Bianca. Quem mandou ela dar em cima do Marcelo?

            __Não! Eu jamais faria isso! Eu a convidei. Ela pode fazer o que quiser. E como a Luana disse, ele parece estar apreciando bastante. __Concluí olhando para o casal, enquanto via Marcelo falar algo no ouvido de Bianca, que a fez rir estridentemente, o que o deixou até um pouco envergonhado, pelo que percebi.

            __Não liga para a Luana. É por isso que ela continua solteira e amargurada. Ela não luta pelo que quer. Você devia ir lá falar com ele.

            __Não. Não devia. __Disse languidamente Esther, que nem parecia ter estado prestando atenção de tão entretida que parecia no barman, que a cada drinque que fazia, ensaiava passos de algum tipo de dança caribenha. __Se ele quiser alguém que dê em cima dele, ele vai ficar com a Bianca. Desculpa, Manuela, mas você não vai conseguir ser tão sedutora quanto ela, mesmo sendo sua festa, e mesmo você estando tão bonita. Ela já tem muitos anos de prática. E mesmo assim, até agora, eles nem ao menos se beijaram, ele só está curtindo o momento. Ele não vai arriscar perder você por uma noite com a Bianca. Mas ele sabe que você estará aqui no alto do seu castelo, esperando que ele chegue no seu cavalo branco para salvá-la. Então ele só virá quando quiser, porque sabe que você estará esperando.

            Todas ficaram estupefatas em silêncio, tanto por Esther parecer saber tanto sobre o que acontecia à sua volta, enquanto parecia estar tão concentrada no peito nu do barman, (como meu pai contratou esse barman afinal?), quanto por tudo o que ela falou fazer tanto sentido. Sem conseguir suportar o silêncio, Bárbara pediu desesperadamente:

            __Então! O que a Manu precisa fazer?

            __Não ficar esperando no castelo. __Prosseguiu Esther desinteressadamente, enquanto seus calmos olhos azuis não piscavam seguindo os movimentos caribenhos do barman. ­­__ Mostrar que não é uma princesinha frágil que vai ficar esperando pela eternidade por ele, enquanto se diverte com a Bianca. E mostrar que ele não é o único príncipe na jogada.

            __Como assim? __Perguntei, embora logo tenha me arrependido. Eu estava estranhamente interessada em seguir cada passo que Esther me falasse para que eu conseguisse ficar com o Marcelo. Chegar aos dezessete sem ter tido nenhum namorado sério faz garotas serem imensamente insensatas.

            __Está bem. Sem metáforas. Manuela... __Agora ela desviou seus olhos azuis do barman, que eu reparara que começara a retribuir seus olhares, dançando ainda mais sensualmente (Meu Deus, meu pai não poderia imaginar isso) para os meus olhos. __Você tem que dar em cima de outro cara. Daí quando o Marcelo procurar você aqui mesmo com o olhar, vai ver que você saiu, e quando ele procurá-la deve encontrá-la muito bem acompanhada. Então ele se arrependerá de não ter vindo logo, se esforçando ao máximo para reconquistá-la. __ E então ela voltou o seu olhar para o barman.

            __Adorei! __Exclamou Martha arfando de excitação rompendo o silêncio que se instalara novamente, como quem se prepara para um jogo divertido. __É isso aí. Agora só falta escolher o garoto. Ele tem que ser lindo, para o Marcelo morrer de ciúmes.

            __Que tal o Alexandre? __Sugeriu Bárbara sorrindo, olhando para um garoto de cabelo tingido e ar boçal que conversava com três garotas simultaneamente.

            __Não! Ele é o maior galinha. Ele fica com qualquer uma. __Martha determinou rapidamente, e ninguém fez comentários de que ela se incluíra no conceito de qualquer uma. __Eu prefiro o Matheus. O que você acha Manu?

            __Ai, gente. Eu não tenho coragem. __Confessei ruborizando, não tão animada quanto Martha, mas sentindo um desconforto no estômago que poderia ser traduzido em quatro letras, medo. __É melhor eu ficar aqui mesmo. Eu não preciso de garoto para ser feliz. __Finalizei de forma não muito convincente.

            __Concordo. __Comentou Luana, embora não houvesse tanta segurança em sua voz.

            __Assim você nunca vai conseguir o Marcelo. Vai ficar sentada aqui o tempo todo, o vendo se agarrar com a Bianca. __Prosseguiu Esther. Olhei rapidamente para eles, que realmente estavam se agarrando, sem beijos por enquanto, mas com muitas mãos. __Mas o Matheus não teria coragem de ficar com a Manuela, sendo amigo do Marcelo, ainda mais se ele souber que o Marcelo tem uma queda por ela.

            __O Marcelo tem uma queda pela Manu, Esther?! __Exclamou Bárbara, roubando as palavras da minha boca.

            __Talvez. Mas por via das dúvidas, não é bom causar uma briga entre melhores amigos. Eles são muito leais em relação a garotas. __Concluiu Esther.

            __Até parece...__Comentou Luana sendo calada por um olhar repressor de Martha.

            __O Pedro é legal. __Sugeriu acanhadamente Thaís, embora já parecesse arrependida de ter se pronunciado.

            __Para você. __Respondeu Esther. __É melhor alguém desconhecido.  Assim o Marcelo ficará extremamente curioso e se perguntando se o cara já não é seu namorado.

            Todas dispersamos os olhares pelo salão, procurando garotos desconhecidos, que eram muitos, mas principalmente namorados de garotas da escola. Segui o olhar experiente de Esther, mas esta ainda encarava o barman que preparara um lindo drinque, colocando-o no balcão e sinalizando para ela ir buscá-lo. Desviei um pouco o olhar daquela cena que quase me assustava quando me deparei com um homem desconhecido.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Capítulo 1 - Lampejo


Encaro no espelho minhas íris escurecidas. Elas estão estranhamente negras. Devem ser as minhas pupilas dilatadas, alertas e esperando o pior. Fecho os olhos, e tudo me vem como um lampejo. Abro os olhos. Não havia sido uma boa idéia lavar o rosto para me despertar daquilo que parecia um pesadelo turbulento. Agora encaro no espelho minha face manchada pela maquiagem caprichosamente feita pelas funcionárias do salão, para o meu grande dia. O meu rímel escorre pelo meu rosto, como lágrimas que eu não conseguira derramar.

Fecho os olhos novamente, na tentativa de que quando os abra, perceba que estivera deitada na minha cama por todo o tempo, mas isso não parece uma boa idéia. A vertigem e os tremores que percorrem meu corpo me fazem perder o equilíbrio. Apóio-me na bancada, ao mesmo tempo em que agradeço por minha festa de aniversário estar tão divertida, uma vez que o banheiro está deserto, e ninguém poderia invadir a privacidade do meu desespero.

Abrindo os olhos, encontro meus olhos assustados, finalmente assimilando que não é um pesadelo, uma vez que nem a minha mente sonhadora conseguiria imaginar isso. Encontro minha bolsa segura ao meu lado. É uma emergência, e sei que nessa minúscula bolsa posso encontrar três maneiras de enfrentá-la: meus lenços de papel, que enxugariam minhas lágrimas; meu kit de maquiagem que me deixaria apresentável para voltar e aproveitar a minha festa; e meu celular, para chamar a polícia, ou, quem sabe meu pai.

Escolho o primeiro, não para secar as lágrimas que não vieram, mas para limpar o meu rosto. E aceito o segundo, refazendo minha maquiagem. Talvez isso seja um talento, mas quem me visse agora jamais imaginaria como estivera há um segundo, exceto talvez pelas pupilas.

Procuro meu celular. Ele quase queima na minha mão. Solto-o subitamente no interior da minha bolsa. Eu não saberia o que dizer. E teria mesmo algo para se dizer? O que realmente havia acontecido naquele salão? Sento-me numa cadeira de frente ao espelho. Ela é surpreendentemente confortável para um assento de toalete. Sinto-me orgulhosa por meu pai ter escolhido o melhor para a minha festa. É, talvez aí seja um bom ponto de partida para tentar refazer essa história.