Tamborilando
meus dedos na mesa dobrável de madeira, me desculpo com a garçonete que me
pergunta pela terceira vez se já farei o meu pedido. Aproveito e pergunto o
horário, também pela terceira vez. Ainda não são oito horas da manhã, e faz
apenas três horas que falei com Marcelo.
Protegida
na sombra do guarda-sol adaptado à mesa, na parte externa da lanchonete,
separada da rua por um cercado de madeira, admiro a praça principal da cidade à
minha frente. A lanchonete está quase deserta, colorida com as decorações de
Natal que brilham com a luz do sol. As portas da igreja se abrem para a praça,
e o sino começa a tocar, anunciando o início da missa natalina. Os primeiros
fiéis entram, idosos, crianças, adultos, homens e mulheres, todos irradiando
felicidade.
Decido-me
por chamar a garçonete, que parece entediada quando se aproxima novamente da
minha mesa, talvez por pensar que eu vá apenas perguntar as horas, ou por estar
usando um chapéu de papai Noel, no qual não parece confortável. Eu peço um café
com leite, entregando o restante do dinheiro como pagamento. Agora me restam
apenas um cartão telefônico com cinco unidades, a roupa do corpo e a esperança
de que Marcelo apareça.
Sorrio
para as crianças que passam correndo, mostrando aos amigos seus variados
presentes. Há pouco tempo eu era um deles, me preocupando apenas com que
presente eu ganharia dos meus pais. Eu os invejo por sua inocência, e pela
simplicidade de suas vidas, ausência de preocupações e qualquer
responsabilidade, exceto a de ser feliz.
As
ruas estão calmas, e as pessoas que saem de suas casas, vão caminhando para a
igreja, enfeitiçadas pela magia do Natal. Agradeço a garçonete que entrega meu
pedido, e lhe desejo um feliz natal, quando ela faz o mesmo.
O
café com leite aquece meu corpo, mas o sinto estremecer, de uma forma boa,
quando vejo o carro de Marcelo estacionar em frente à lanchonete. Meu coração
bate desesperado contra as paredes do meu peito, como se quisesse se libertar e
correr até ele.
Tento
me conter, mas a antiga Manuela me proíbe de ser rígida comigo mesmo, e me
permito chorar, quando me levanto e atravesso a calçada até ele. Marcelo sai do
carro, ainda usando seu terno abarrotado, por ter saído do seu jantar de natal
diretamente para a estrada, e mal posso descrever sua expressão.
Ele
sorri tais quais as crianças que corriam com seus brinquedos, num misto de
êxtase e incredulidade. Vejo as lágrimas em seus olhos, e compreendo que não há
motivos para não extravasá-las quando se é por uma extrema felicidade. Seu
corpo se choca contra o meu em desespero quando ele me abraça e me beija.
Eu
me entrego aos seus beijos, e o abraço maravilhada, sorrindo quando o vejo se
distanciar para encarar meu rosto, verificando se sou realmente eu, e se esse
momento é real. E então choro quando Marcelo me abraça novamente, e sinto suas
lágrimas molharem meu rosto, confundindo-se com as minhas.
As
pessoas sorriem e observam curiosas nosso encontro emocionado, mas não me
importo. Ainda no abraço de Marcelo, enquanto o conduzo para nossa mesa, a
imagem de Dan vem à minha mente, mas eu a ignoro. Ele não merece interromper
meu momento de felicidade.
Marcelo
se senta à minha frente estupefato com um sorriso bobo fixo no rosto.
__Não
é estranho que seja tão difícil de acreditar que tudo o que eu pedi nesses
últimos dias seja verdade e esteja agora diante dos meus olhos? Manu... Manu...
__Sussurra me beijando novamente entrelaçando suas mãos nas minhas. __Manu...
Eu não quero acordar. Esse é o melhor sonho que eu já tive.
__Não
é um sonho, é a verdade. __Sorrio admirando seus olhos brilhantes pelo reflexo
de suas lágrimas, e o beijando novamente. Repreendo-me por olhá-lo e não
achá-lo tão maravilhoso como antigamente. Talvez eu não possa mais amá-lo de
uma forma sonhadora, encantada por sua beleza angelical e seu porte atlético, mas
sim racionalmente, pela pessoa bondosa e amorosa que ele é e sempre foi comigo.
Beijo-o novamente, e seu toque me acalma, embora os flashbacks do toque e dos
beijos de Dan invadam minha mente, me perturbando.
__Meu
Deus, Manu. O que houve? Eu não acreditei quando ainda naquela madrugada se
espalhou a notícia de que havia um incêndio na sua casa. Quando cheguei os
bombeiros já estavam tentando extingui-lo, apenas para impedir que se
propagasse para a vizinhança, porque não havia sobreviventes. Eu não acreditei.
__Eu o ouço narrar emocionado, com seu olhar desfocado, como se presenciasse
novamente aquela noite terrível não apenas para ele. __Você não poderia ter
morrido. Não poderia ter me deixado. Meus pais haviam ido comigo e me
consolaram. Ah, Manu. Mas isso não importa. Você está aqui comigo de novo, não
faço idéia de que maneira, mas sou grato. __Conclui abraçando-me novamente.
__Tudo
bem. __Respondo me aconchegando em seu abraço protetor, agradecendo por poder
ser apenas uma menina assustada em seus braços, não precisando impressioná-lo
nem construir uma barreira ao redor do meu coração, para impedi-lo de entrar.__É
bom ouvir sua voz.
__Ah,
Manu. Eu não sei se mereço tudo isso. Poder abraçar e beijar você depois de
tudo o que aconteceu. Meu Deus. É bom demais para ser verdade.
Ele
me beija novamente e eu retribuo, agradecendo a calma que ele me passa, embora
as lembranças de Dan ainda não tenham me abandonado, e percebo que por mais que
eu mantenha meu coração aberto para Marcelo, Dan não o deixa entrar. Somos interrompidos pela garçonete que parece
tímida ao nos oferecer o cardápio o qual eu recusara antes. Marcelo ainda me
abraçando o aceita e olha para mim preocupado.
__Meu
Deus. Você já comeu alguma coisa hoje? É melhor pedirmos alguma coisa.
__Um
sanduíche integral e um suco de maracujá.
__O
mesmo para mim. __Marcelo pede ainda me contemplando. __E seus pais? Onde eles estão?
__Eles...
Eles realmente morreram.
__Eu
sinto muito, Manu.__Lamenta me abraçando apertado contra seu corpo, beijando
meu rosto com doçura, e afagando meus cabelos. __É tudo tão absurdo para mim. Como
isso aconteceu? Só você sobreviveu? E onde você esteve esse tempo todo? Por que
deixou que todos pensassem que estava morta? E aquele corpo que eu vi?
__É
uma história complicada, Marcelo. E ela parece confusa até para mim.
__Sou
todo ouvidos. A não ser que você não queira falar sobre isso.
__Tudo
bem... __Inicio tentando dar uma seqüência lógica aos fatos. __ Você se lembra
daquele homem que morreu na minha festa de aniversário?
__Sim.
Como poderia esquecer o dia em que começamos a namorar? __Sorri beijando minhas
mãos.
__Ele
era um executor.
__Executor?
__Pergunta olhando-me preocupado. __ É o que eu acho que significa?
__Um
matador de aluguel. __Sussurro, embora a essa hora a lanchonete esteja
praticamente deserta. __Ele era um dos executores que pretendiam me matar, mas
um deles, o homem com o qual eu conversava no bar naquele dia, me defendeu o
matando. Eu não disse nada porque não estava certa quanto ao que acontecera, e
estava assustada. Mas foi esse mesmo homem que incendiou minha casa, matando
meus pais. Entretanto ele me salvou por não tê-lo entregue à polícia na minha
festa, e colocou outro corpo no meu lugar, para todos pensarem que eu estava
morta.
__Como
assim? Você tem certeza do que está falando, Manu? __Marcelo me pergunta
preocupado, com um ar de dúvida nos seus olhos fixos nos meus.
__Infelizmente
sim. É uma loucura. Meus pais estavam fazendo alguns negócios ilegais e
acabaram caindo na própria armadilha. E eu caí junto. Essas pessoas para quem
meu pai trabalhava quiseram se vingar por ele estar querendo deixá-los, e
conseguiram.
__Seus
pais? É difícil de acreditar que eles tenham se metido nesse tipo de coisa. Mas
essas pessoas, para quem seus pais trabalhavam, sabem que você sobreviveu?
__Sim.
Graças à minha própria infantilidade. Esse homem que me salvou, o Dan...__Falar
seu nome faz um calafrio percorrer meu corpo, como se o tivesse chamando. __Eu
não acreditei nele. Achei que estava me seqüestrando, pois me manteve presa
numa casa por algum tempo, e então eu fugi para procurar a polícia.
__E
fez muito bem.
__Não.
Eu acabei sendo pega por alguns dos subordinados do mandante da morte dos meus
pais. E o Dan me salvou...
__Onde
ele está agora?
__Deve
estar na casa onde estamos morando.
__E
por que você só me procurou agora, Manu? Você não faz idéia do quanto eu sofri
esses dias. Nunca parei de pensar em você, num só momento.
__Eu
não quis te envolver, Marcelo. Nem agora eu deveria ter feito isso.
__Você
está arrependida por ter me ligado? __Marcelo pergunta parecendo chateado.
__Não!
Mas agora você está envolvido. Eles nunca me deixarão em paz. Eu não quero que
cacem você como estão fazendo comigo nem que o torturem. Quando eu soube que
todos imaginavam que eu estava morta, decidi deixá-lo livre. Para continuar sua
vida normal. E agora estou sendo egoísta trazendo você para o caos que é a minha
vida.
__Como
assim me deixar livre, Manu?! Minha vida que estava um caos sem você. Eu sou
seu namorado. Tudo que te faça mal também me faz mal. Eu estou com você em
todas as horas, as boas e ruins. Você não deveria ter demorado tanto para me
ligar. Mas vamos recuperar o tempo perdido. Você vem comigo?
__Para
onde, Marcelo?! Eles me encontrarão onde quer que eu esteja.
__Nós
vamos à polícia, e meu pai é advogado, Manu. Ele vai nos ajudar. Vai ficar tudo
bem, ninguém vai suspeitar de você.
__Suspeitar
de mim?! __Exclamo incrédula, contendo meu tom de voz.
__Sim,
Manu. Apenas você sobreviveu, mas não se preocupe. __Continua se levantando da
cadeira.__É melhor nós irmos, meus pais nem sabem para onde fui.
__Você
não entende a magnitude da situação, Marcelo. Eles são terríveis, poderosos. E
eu não sei até que ponto a polícia os acoberta. Os homens que me capturaram
quando fugi tinham distintivos. E eu não posso te envolver nisso.
__Então
qual é a sua idéia, Manu? __Pergunta voltando a se sentar.
__Eu
não sei o que fazer. Mas ninguém pode saber que estou viva. __Insisto.
__Manu,
me ouve. Nós vamos até a polícia, eles te darão proteção. Há tantas pessoas que
amam você. Eu, meus pais que adorarão hospedá-la na nossa casa, as garotas que
ficaram apavoradas com a sua morte. Todos protegeremos você. E com tudo o que
você disser para a polícia irá ajudá-los a prender os culpados, o assassino dos
seus pais e essas pessoas para quem seu pai trabalhava.
__Não,
o Dan apenas me protegeu esse tempo todo. __Afirmo tentando convencê-lo, sabendo
que mesmo que eu odeie Dan, não posso esquecer tudo o que ele fizera por mim.
__Manu,
eu não entendo muito desses assuntos de crimes e assassinatos. Mas esse cara é
muito suspeito, não apenas pela morte de seus pais, que nós já sabemos que é o
culpado, mas dessa história toda. É claro que ele estava seqüestrando você com
alguma intenção obscura, e tentando assustá-la para que confiasse nele.
__Como
assim?
__Você
não acha muito suspeito que ele tenha salvado você duas vezes sem qualquer
motivo plausível aparente? E é muita coincidência que quando você consegue
fugir dele, já se depare com dois captores que nem sabiam que você estava viva.
O que eles estariam fazendo em outra cidade? Ele deve estar lhe assustando com
essas idéias para que você não fuja novamente, e confie nele. Você deve ter um
valor maior viva do que morta, só não sabemos para quem.
__Você
acha que ele vai me entregar para alguém?
__Sim.
__Marcelo prossegue em seu raciocínio que me parece cada vez mais convincente.
__Por que ele estaria te salvando por todo esse tempo? Apenas pelo prazer da
sua companhia? Uma pessoa desse tipo não saberia dar valor a isso. E por que a
polícia não pode saber que você está viva? Para que ninguém possa atrapalhar o trabalho
dele. Ele já disse o que planeja fazer com você?
__Antes
ele dizia que iria me deixar em algum lugar seguro fora do país, mas agora que
eles sabem que estou viva, vai tentar conseguir reforço e está investigando até
onde se estende o poderio desses homens.
__Desculpa,
Manu. Mas você está se enganando. Como ele pode não saber nada sobre quem o
pagou para matar sua família? É melhor nós procurarmos meu pai e a polícia.
Você vai poder descansar e esquecer todo esse pesadelo. Está na hora de acordar.
__Sorri me beijando, como um príncipe encantado me despertando de um sono que
já durava mais tempo do que eu desejava e que me aterrorizara com seus
terríveis pesadelos. Sorrio novamente, o abraçando quando nos levantamos, após
Marcelo deixar o pagamento sobre a mesa.
Sim.
Marcelo me despertou do pior pesadelo que eu já tivera e tudo ficará bem. Eu me
espanto por ter sido tão ingênua acreditando que Dan me mantivera viva esse
tempo todo apenas em recompensa a um favor que custara a vida dos meus pais, ou
até mesmo por nutrir algum sentimento por mim, como eu quisera acreditar.
Felizmente, eu finalmente fizera o certo pedindo ajuda a Marcelo. O olhar
imparcial de alguém que não passara por minha dor, e muito menos se deixara
encantar pela aura misteriosa de Dan, conseguiu responder as perguntas que me
perturbaram por todos esses dias.
Eu
nem ao menos titubeio em acreditar. Se Dan fora capaz de me ferir como fizera
na noite de Natal, nada que Marcelo me diga me será impossível de acreditar.
Abraçados nos dirigimos ao carro, e a vida me sorri quando a calma me invade,
mas mal posso sentir seu gosto, ao ver um carro escuro estacionar em frente à
lanchonete. E eu nem ao menos posso gritar. O pesadelo apenas dera uma pequena
pausa, mas agora retorna com todo seu horror.
Marcelo
ainda sorri me conduzindo à rua, mal percebendo o que nos espera, enquanto meus
olhos aguçados já acostumados a esperar o pior observam três homens à paisana descerem
do carro. Eu quase compartilho o sorriso confiante de Marcelo, tentando
acreditar que estou apenas paranóica e esses são homens totalmente honestos
vindo tomar o primeiro café-da-manhã do Natal.
No
entanto, minha ilusão que ainda nem me convencera se dissipa, quando eles nos
cercam, fazendo Marcelo ficar tenso no meu abraço, quando visualiza as armas
que eles nos apontam, ordenando que entremos no carro sem chamar atenção. Olho
para o lado e vejo a garçonete pegar o dinheiro que havíamos deixado na mesa.
Ela nos olha despreocupada, como se apenas estivéssemos dando informações a
turistas, e nem ao menos parece alarmada, quando entramos no banco traseiro do
carro.
Marcelo
tenta disfarçar seu pavor, mas posso sentir sua mão úmida apertando a minha.
Seu outro braço rodeia minha cintura e me segura apertada contra ele. Seu olhar
está perdido através da janela, e seu coração bate acelerado no seu peito, no
qual apóio minhas costas.
Eu
me ajeito ao seu lado, para encarar seu rosto angelical assustado, fazendo-o
sorrir sem graça ao perceber a direção do meu olhar. Ele me beija com seus
lábios trêmulos e frios, tentando me manter calma, embora ele mesmo não
consiga, e ainda sorrindo sussurra ao meu ouvido.
__Não
se preocupe, Manu. Tudo vai ficar bem.
Eu
sorrio e o beijo demoradamente de volta, ignorando os três homens que
permanecem em silêncio, enquanto nos encaminham para a estrada, na direção
oposta da minha cidade natal. E o vejo parecer aliviado, ao imaginar que
conseguiu me acalmar, ao dizer que tudo ficará bem. No entanto, dessa vez eu
sou esperta o suficiente para não acreditar nele.