segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Capítulo 26 - Caos


O sol está no seu ponto mais alto no céu nos banhando com seu calor revigorante quando entramos na cidade de Dan. Nossa viagem está marcada para o dia seguinte e voltamos para buscar nossas coisas. Dan não queria voltar, por não gostar de despedidas. Mas eu insistira, sua mãe não merecia a dor de ver Dan fugir novamente sem lhe dar mais notícias.

Eu agradeci quando ele me prometeu que voltaríamos para visitá-los assim que tudo estivesse resolvido, o que talvez seja possível se Dan conseguir contatar as pessoas que haviam ajudado meu pai e auxiliá-los a tomar o poder de Silas. A família de Dan é o mais próximo de família que eu tenho. O carinho materno de sua mãe e a altivez do seu pai, que dá lugar à sua sabedoria, quando se acalma.

E Dan. Dan, minha família, meu sol, meu tudo. Dan observa curioso minha expressão contemplativa quando entramos em sua rua, passando pela praça repleta de crianças brincando de ser feliz. Eu sorrio para ele e me sinto incrivelmente completa, como se o vazio que se abrira em minha alma desde a morte dos meus pais tivesse finalmente se fechando, como se os meus ferimentos finalmente cicatrizassem.

E eu o beijo em gratidão antes que meus olhos se deparem com o caos. Uma vez que voltando o meu olhar para a casa dos pais de Dan, encontro um automóvel escuro estacionado à sua frente. Eu reprimo meu grito de horror, quando vejo Dan transtornado sair do carro num impulso, percorrendo a distância até a casa antes mesmo que eu consiga me desvencilhar do cinto de segurança.

Percorro a distância como num sonho em que estamos fugindo, mas que por mais que lutemos com todas as nossas forças, mal conseguimos nos mover. Alcançando a sala, vejo Dan atormentado socorrer Adelaide fora de si, quase sem sentidos.  Ela se debate contra seu abraço, gritando palavras sem sentido, tentando se afastar dele, enquanto Heitor, enfurecido, tenta protegê-la.

Não sou apenas eu que observo a cena. Há um homem de cabelos escuros e curtos na sala admirando tudo o que se passa quase que com indiferença, com um humor sombrio nos seus lábios finos e em seus olhos esverdeados. Eu nunca o vira anteriormente, e de alguma forma, sei que não é um dos subalternos de Silas. Não parece se submeter a ninguém, observando tudo e todos com um olhar soberbo.

Encontro o olhar implorativo de Dan que se dirige furioso ao desconhecido.

__O que você fez, William?! O que você quer de mim?!

__Eu não fiz nada, Dan. Apenas contei a sua família quem você é, na verdade. Eu nunca pensei que eles ficariam tão abalados.

__Henrique, meu filho! Diga que ele está mentindo! Como você pôde fazer isso?!__Exclama Adelaide se afastando do filho, embora mal consiga se manter de pé, olhando-o incrédula e arrasada.

__Um assassino! Você é um assassino! Saia da minha casa! __Ouço Heitor trêmulo esbravejar para Dan, segurando com dificuldade Adelaide quase desacordada em seus braços. Eu me aproximo tentando ajudá-los sendo recebida por seu olhar de repulsa. __Você não é melhor do que ele! Pagar pelas mortes dos próprios pais! Vocês se merecem!

__Vocês mentiram para mim! __Grita Adelaide com esforço, levando a mão em aperto ao peito, com as lágrimas banhando sua face que se contorce numa expressão de dor. __Você nunca deveria ter voltado, Henrique! Não é mais o meu filho! Eu não criei um monstro! Um assassino! Eu não posso ter dado tanto amor a você, para que se tornasse isso!

__Mãe, calma. Pai, você já chamou uma ambulância?

__Eu já chamei. __Ouço William informar indiferente. __Eu não vim executar ninguém.

__Não me chame de pai! Você deveria ter morrido e nunca ter voltado para sujar a minha casa, macular a honra da minha família. Você não pertence mais a essa família, não pertence há dez anos. Nunca deveria ter voltado para nos envergonhar. Era melhor que tivéssemos sabido apenas de sua morte, ou que nem mais tivéssemos ouvido nada sobre você. Mas você já está morto para nós. E está matando sua mãe de decepção. Saia dessa casa e nunca mais volte.

__Pai, não é o momento para isso. A mãe está muito mal.

__Por sua causa! Saia daqui. __Heitor vocifera com o rosto em brasas.

__Eu não vou sair daqui! A mãe precisa de mim! __O olhar de Dan parece perdido, como uma criança que é descoberta, mas ainda tenta consertar as coisas.

__Tire-o daqui, Heitor. Eu não posso vê-lo. Isso está me matando. Eu não mereço... __E então o seu corpo inerte teria tombado ao chão se Dan não tivesse ajudado seu pai a segurá-la.

Eu me afasto para que os enfermeiros da ambulância que chegaram pedindo calma possam passar. Eles levam o corpo de Adelaide até uma maca, sendo acompanhados por Dan e seu pai, ambos aflitos. Dan insiste para que possa acompanhá-los na ambulância, no entanto, seu pai reage dizendo que fora sua culpa tudo o que acontecera, e então desiste permanecendo ao meu lado atordoado.

Eu o abraço e o beijo tentando tranqüilizá-lo, entretanto Dan se desvencilha do meu abraço enfurecido, atacando William que permanece estático sorrindo com sarcasmo.

__É assim que você recepciona velhos amigos, Dan?! __Sorri não se importando que Dan esteja o pressionando contra a parede, segurando-o pelo terno escuro, numa posição que não parece nada confortável, ainda mais com o olhar enlouquecido que Dan o dirige.

__O que você está fazendo aqui, William? Eu poderia matá-lo agora. Mas não quero sujar minhas mãos.

__Eu diria que elas já estão bem sujas, Dan. E não queremos assustar sua bela companhia, não é? __Ironiza destinando seu olhar sombrio aos meus olhos, me fazendo estremecer diante de sua visão ameaçadora. Dan o liberta quando ele informa que veio em missão de paz, querendo apenas conversar. William arruma seu terno caro, sorrindo para mim em cumprimento. Eu desvio o olhar com repulsa provocando sua gargalhada.

__Em missão de paz, William? Você não vai se meter na minha vida novamente, porque eu não vou permitir. __Declara Dan tentando recuperar a calma, o encarando friamente.

__Eu já me meti, Dan. E não vou sair até que você me dê tudo o que eu quero.

__E o que você quer além de matar minha mãe?!

__Eu quero sua ajuda em nome dos velhos tempos. Eu quero sua ajuda numa tarefa que você não concluiu.

__Do que você está falando? __Diz, embora eu perceba em seu olhar que Dan sabe e está apreensivo com o que William pode falar.

__Silas me contratou para matar os pais dela. E se você me disser onde eles estão, eu poupo a garota. E disfarço bem melhor do que você a sua morte. Que golpe você deu no Silas, Dan! Golpe de mestre! Deve ter ganhado uma bolada dos dois lados.

__Os meus pais estão mortos. __Repito enfurecida pelo que parece ser a milésima vez.

__Tem certeza, Manuela? __Ouço William perguntar com seu olhar frio fixo no meu. __Talvez você queira dar uma olhada nisso.

E então eu pego hesitante o envelope de suas mãos antes que Dan possa me impedir com um olhar de reprovação. E eu vejo. Meus pais almoçando num restaurante cujo nome é em francês, embora pela bandeira eu perceba ser no Canadá. Minha mãe com os cabelos curtos num tom forte de vermelho, com as mãos sobre as do meu pai, com os cabelos crescidos e uma barba mal aparada.

O grito de horror que eu liberto faz Dan correr para me abraçar, mas eu me afasto apavorada. Eles estão vivos! Eles estão vivos! Eu grito repetidamente incrédula, entre feliz e aturdida. Eles estão vivos! Olho as outras fotos enlouquecida, outra e outras imagens, em diferentes lugares. Eles estão vivos. Eu caio em prantos, sentindo minha mente turva, quando o peso do meu próprio corpo se torna insuportável para mim.

Antes que eu caia desacordada ao chão sinto o abraço tenso de Dan que se esforça para encontrar o meu olhar, embora seja difícil enxergá-lo quando minha vista se torna tão escura, como num eclipse solar, tudo se fechando para mim na escuridão.

__Manuela, Manuela! __Ouço Dan exclamar preocupado tentando me manter acordada enquanto eu não sei ao certo se estou num sonho, num pesadelo ou num mundo paralelo. __Eu não queria que você soubesse assim.

__O quê?! __Grito embora minha voz pareça estranhamente distante, assim como o rosto de Dan, embora eu sinta os seus lábios na minha testa e na minha boca. __O quê?! O quê?! __Pergunto formando meu próprio eco.

__Eles quiseram assim. Eles me pediram que fosse assim para sua própria segurança. Manuela, olha para mim. Olha para mim. __Ordena quando eu não consigo focalizar meu olhar, sentindo o mundo explodir não de uma forma boa, mas de uma forma violenta, com meu corpo queimando em desespero e meu coração estourando quando meu sangue começa a ferver.

__Afaste-se de mim. __Ouço-me vociferar me afastando do seu abraço e indo até William que contempla a cena entretido, num ímpeto de consciência, antes que tudo se torne irreal para mim novamente. __Como você conseguiu isso? Quando?

__Nessa última semana. Devem estar num passeio romântico e não quiseram levá-la. Eu sinto muito. Acho que você não era muito bem-vinda.

__Cale-se, seu idiota. Vai embora daqui, William. Antes que eu não me importe mais em sujar minhas mãos. __Exige Dan o empurrando violentamente para fora da casa. __Saia daqui.

__Tem certeza de que não vai me ajudar, Dan? O Silas disse que perdoaria os dois...

__Dane-se o Silas, e dane-se você. Vai embora.

Eu me sento desolada no chão da varanda, quando vejo William ir embora no seu carro, sorrindo ao olhar para trás. Eu não acredito no que está acontecendo. Talvez seja apenas mais um de meus pesadelos confusos, que eu não tivera desde que declarara meu amor a Dan, mas talvez eles tenham voltado. Eu preciso acordar. Falo para mim mesma, ainda com minha visão turva pelas lágrimas que banham minha face. Eu preciso acordar e Dan estará ao meu lado para me consolar, e nós sorriremos disso tudo, porque não é possível que isso esteja realmente acontecendo.

Meus pais não podem estar vivos e terem me abandonado por todo esse tempo. E Dan não pode ter mentido para mim. Isso não está acontecendo. Isso não está acontecendo. Eu preciso acordar e sentir Dan ao meu lado, me dizendo que eu apenas tive um sonho ruim. Mas quando eu o vejo se aproximar encarando apreensivo o meu rosto, percebo que talvez ele não seja uma companhia tão segura.

Eu me afasto, levantando-me subitamente, quando ele se aproxima acariciando meu rosto, deixando um rastro de fogo ao seu mínimo toque.

__Manuela, eu sinto muito. Eu tentei contar a você...

__Você tentou me contar?!

__Sim... Mas você disse que perdoava qualquer coisa que eu tivesse feito no passado, e eu pensei que isso também estivesse incluso.

__A morte dos meus pais?! Você deixou que eu acreditasse que meus pais tivessem morrido! Quantas vezes eu pensei em me matar me sentindo culpada por não ter lhe entregue à polícia no meu aniversário?

__Eu não permitiria que você fizesse essa loucura.

__Mas eu poderia ter feito, e eu estava morrendo por dentro. E você realmente se importaria, Dan?! Ou não me deixaria fazer isso e me salvou tantas vezes apenas porque fazia parte de algum acordo doentio que você fez com meus pais?

__Manuela, me ouve. Os seus pais me pediram para não contar nada a você, para sua própria segurança e a deles. O Silas me contratou, na verdade, eu apenas fiquei sabendo pelo Levi, um dos meus contatos, que alguém queria a morte da sua família, por três milhões de euros. E que assim que eu aceitasse, enviariam a metade para minha conta. Eu já estava acostumado a fazer isso, e entediado. E era muito dinheiro. Eu comecei a investigar a sua família, e realmente fiquei surpreso por alguém querer matá-los. Seu pai parecia muito honesto, por isso eu pensei em casos de herança complicada, embora não houvesse parentes próximos. 

“Por fim, eu contatei seu pai. Informei-o de que alguém me pagara para matá-lo. Eu queria uma aventura, me arriscar, algo que eu nunca fazia. O seu pai me disse que imaginava quem fosse, e que estava com problemas financeiros. Porém, me falou que se juntasse todas as suas economias conseguiria me dar cinco milhões de euros, de uma vez só. Ele estava desesperado com a segurança da sua família...”

__Pára, Dan. Eu não quero ouvir. Eu não quero acreditar.__Declaro chorosa.

__Você precisa ouvir. E se você quiser, eu posso deixá-la com eles e conto tudo no caminho. O William já sabe onde os seus pais estão, e ele é muito perigoso.

__Eu não vou com você a lugar algum.

__Manuela, o William descobriu que estamos aqui. Logo o Silas saberá e virá atrás de você.

__Eu não me importo.

__Eu me importo. Por favor, entre no carro e ouça o que eu tenho para lhe dizer. Depois, você pode fazer o que quiser.

Sem fazer resistência, ainda atônita, me vejo obedecer a Dan, ouvindo contra minha vontade o seu relato.

__E então o seu pai me ofereceu um acordo. Eu o alertei de que para terem me oferecido tal quantia, deviam querer com muita urgência a morte deles, e era bem provável que tivessem contratado outros executores. O seu pai me disse que reforçaria a segurança, até que pudéssemos simular as mortes, para que pudessem fugir do país. Mas temia pelo seu aniversário, uma vez que você não sabia de nada, e ele e sua mãe não queriam alarmá-la. Eu disse que era provável que algum outro executor aparecesse, mas o tranqüilizei dizendo que a protegeria. Ele já havia depositado o dinheiro, e de assassino agora eu passaria a segurança de vocês.

__Dan, eu já entendi. __Declaro quando ganhamos novamente a estrada, na direção de onde pegaremos o avião, tentando conter as lágrimas, para não deixar ainda mais ridícula minha situação. __O meu pai o pagou para cuidar de mim, para não atrapalhá-los nos seus planos. Eles não conseguiriam me salvar de todas as confusões que eu me meti. Foi melhor ter pagado você para me salvar todas essas vezes. Meu Deus, como eu fui uma idiota. Achando que você tinha me salvado tantas vezes porque me amava. Eu fui tão ingênua. Meu Deus! Que idiota!

__Manuela, você não sabe do que está falando! Se eu não tivesse conhecido você naquela festa, eu nunca teria aceitado esse plano. Fui eu que o propus, porque eu sabia que seria muito perigoso para você. Eu não estava mentindo quando disse que só estava retribuindo um favor. Você me poupou de matar inocentes, e eu decidi proteger você até que pudesse se encontrar com seus pais no exterior.

__Dan, você não precisa fazer isso. Foi uma farsa. Você estava sendo bem pago esse tempo todo, e ainda aproveitou para se divertir um pouco. Resolveu misturar trabalho e diversão. Ah, meu Deus, a não ser que meu pai tenha pagado você para me conquistar. Ele não faria isso.

__Eu nunca me venderia dessa forma, Manuela. Eu propus cuidar de você até se encontrarem num lugar seguro, e sua mãe adorou a idéia. Ela viu que seria mais seguro, pois se eles fossem pegos pelo Silas, e assassinados, nunca encontrariam você. E disse que seria melhor que você imaginasse que eles estivessem mortos, pois não sofreria duas vezes, não teria a esperança de encontrá-los ainda vivos, nem pensaria em fugir e se arriscar para encontrá-los. E caso fôssemos pegos pelo Silas, provaria sua inocência se você não soubesse nada do plano, e talvez ele poupasse sua vida.

__Eles não tinham esse direito, Dan. Eu queria ter tido direito de escolha, se eu concordava com o plano. Tudo o que mais me mortificou quando eu pensei que eles estivessem mortos foi que eu não pude morrer junto com eles. Era tudo o que eu queria. Ter morrido junto com eles.

__Manuela, o que você está dizendo? Os seus pais são loucos por você. Eles só quiseram protegê-la.

__Mas eles não podiam ter feito isso dessa forma, Dan! E você? Você não precisava obedecer a eles. Eu não perdôo você por não ter contado a mim. Meu Deus! Eu entreguei a minha vida a você, e não podia ter me contado algo tão importante?! Como eu sou idiota. Eu apenas me surpreendo mais a cada dia. Eu me apaixonei por você quando você só estava fazendo o seu trabalho. Eu achei que você me amava por isso que estava cuidando de mim. Você deve ter achado que eu era uma louca e uma oferecida completa.

__Manuela, eu aceitei cuidar de você achando que nunca tinha ganhado dinheiro tão fácil. Eu acabava de conseguir oito milhões de euros, quase vinte e cinco milhões de reais, para forjar três mortes e levar uma garota de dezessete anos para fora do país. Era só isso. E então você fugiu, eu salvei você. Eu poderia não ter salvado. Os seus pais fariam o quê comigo? Nós só recuperaríamos o contato um do outro quando estivéssemos em segurança fora do país. E eles poderiam nem estar mais vivos. Eu poderia não ter me arriscado. Mas eu fui lá, não foi nada demais para mim. Porém eu não estava arriscando a minha vida, eu estava arriscando que você se tornasse uma parte importante dela. Eu não deveria ter me importado com você, mas eu me importei. E isso acabou comigo.

“Eu nunca havia me importado com ninguém. No entanto, eu me vi desesperado quando você fugiu, e furioso por você ter traído a minha confiança. Mas você estava confusa e eu a perdoei. E então quando você estava conversando com aquele rapaz na pousada, eu já estava desconsertado com a morte do Levi, e fiquei enfurecido com você. Aquilo não era normal. Eu quis te deixar lá. Eu deveria ter feito isso. Uma pessoa importante para mim morrera por sua causa e você ainda estava flertando com um cara, quando tudo desabava à sua volta. E eu vi naquele momento, que você já estava virando tudo de cabeça pra baixo, já estava mudando o meu mundo.

Eu não podia permitir. Eu tentei mostrar a você quem eu realmente era. E então você prepara um jantar de Natal, diz todas aquelas coisas, e ainda me beija. Eu não sei de onde eu tirei forças para me afastar de você naquela noite. Eu estava fora de mim. E fugi transtornado. Mas você já sabe tudo o que aconteceu depois. Eu nunca menti para você, Manuela.

Mas eu devia ter contado, nunca imaginei que essa seria a única forma de evitar você. Se eu tivesse contado que seus pais estavam vivos, e que havia esperança de tudo voltar a ser como era antes na sua vida, a sua faculdade, sua cidade, seus amigos e seu namorado, você nunca teria ficado comigo. Porque você só ficou comigo porque eu era a sua única escolha. Porque você só tinha a mim, e era grata.”

__Você não sabe nada sobre mim, Dan. Eu jamais teria me entregue a você, apenas porque você era só quem eu tinha, ou por gratidão. Não é porque você mesmo não se ama, que eu não posso amar você.

__Manuela, mas é a verdade. E eu queria ter falado desde o primeiro momento, quando você acordou. Mas qual foi a primeira coisa que você falou? Você agradeceu a mim por ter salvado você? Não. Você me acusou de ter matado os seus pais, porque sabia o que eu era, um assassino. Mas quando viu que só tinha a mim, viu que era melhor do que nada. Quem se apaixonaria pelo assassino dos próprios pais?

__Quem é você para me julgar, Dan? Eu pensei que tivesse um lado bom em você, mas quem diria que ele surge apenas quando comprado pelo dinheiro? Ainda bem que meu pai tinha dinheiro para pagá-lo, senão você passaria por mim e nem ao menos olharia. Eu achando que você era capaz de amar uma pessoa, mas você só estava atrás do dinheiro do meu pai. Eu não acredito que fui capaz de acreditar que você me amava! Você, incapaz de amar qualquer um!

__Talvez seja melhor assim, Manuela. Que você me odeie. Você não foi a única ingênua. Pode ficar surpresa, mas eu acreditei que tivéssemos um futuro, só não sabia que ele duraria tão pouco. E que viraria passado assim que você descobrisse que todo seu drama foi uma farsa. Eu só não queria ter acreditado tanto nela. Eu acabei caindo na minha própria armadilha. Mas não me arrependo.

__Não venha se fazer de vítima, Dan. Você não combina com esse papel. O seu papel sempre vai ser o de vilão. Porque é isso o que você é. Um assassino. __Soluço, cobrindo o meu rosto com as próprias mãos. Eu não acredito como posso estar falando isso, mas talvez com a mesma força que o amo, eu o odeio por ter me traído, ter me feito acreditar em suas mentiras.

            __Eu nunca traí o meu papel. Ainda estou o exercendo como posso. Mas não se preocupe, Manuela. Eu pararei de ser o vilão da sua vida. É isso o que eu sou, um assassino. Mesmo quando não sou eu que puxo o gatilho. A minha mãe está à beira da morte por minha culpa, e com você não aconteceria diferente se prolongássemos isso. Eu agradeço que a nossa separação não seja contrária à vontade de nenhum dos dois, e que ambos estejamos em comum acordo. Os seus pais não precisam saber de nada, nem da sua, nem da minha falha. Ninguém precisa saber que nós estivemos juntos, se é que nós realmente estivemos juntos algum dia. Talvez, algum dia próximo ou distante, seja como se nada disso nunca tivesse acontecido.
            E eu não respondo. Porque com as lágrimas que inundam meu rosto, destruindo a minha alma, eu não consigo nem mesmo respirar.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Capítulo 25 - Recanto


Envolvida nos lençóis macios ainda cheirando a amaciante, não encontro o corpo de Dan ao meu lado, me deparando com sua silhueta, sentado á beira da cama. Eu me abraço às suas costas, beijando sua nuca, e sou recebida por seus beijos.

            __Desculpa, eu não quis acordá-la. __Sorri com uma expressão fatigada.

            __Você não me acordou. Eu acordei e vi você ainda desperto. O que houve? Ainda seu pai? Eu pensei que já tivesse passado, já faz uma semana que estamos aqui.

            __Não. O problema é essa semana que estamos aqui. Não é seguro ficarmos num só lugar tanto tempo.

            __Mas está tudo tão bem... __Murmuro me aconchegando contra suas costas, acariciando seus músculos tensos. __Estamos quase tendo uma vida normal novamente. Tivemos até uma festinha de ano novo. Nos noticiários não se fala mais nada sobre nós, há muito mais tragédia acontecendo a nível nacional. E não há sinal de Silas, nem de nenhum dos seus capangas, eles nunca imaginariam que estamos aqui, tão longe, tão escondidos.

            __Esse é o problema. Está tudo muito silencioso. __Eu vejo a preocupação em seu rosto ainda com algumas cicatrizes, que lembram aquele dia inesquecível em todos os sentidos, embora tente disfarçá-la.

            __Você se preocupa pelos seus pais também, não é? É egoísmo meu querer continuar aqui quando estamos arriscando a segurança deles. Você está certo. É melhor irmos embora.

            __Não, Manuela. Não é egoísmo nenhum. Você merece todo o conforto do mundo. Mas eu infelizmente não posso oferecê-lo. Nunca poderei lhe dar o que você merece.

            __Não, Dan, de novo não. __Choramingo o trazendo para perto de mim, distraindo-o com os meus beijos, dos quais ele se afasta.

            __Manuela, isso não vai durar para sempre. Eu estou me esforçando para manter essa vida calma para você e vendo o quanto você está gostando só me angustia ainda mais, por saber que isso é uma farsa.

            __Dan, eu só estou gostando tanto dessa vida porque você está aqui comigo! Ela não teria a mínima graça sem você! Entenda isso, por favor! Eu amo você! Por que é tão difícil acreditar?!

            __Manuela, é claro que eu acredito. E você sabe que eu sinto o mesmo. Mas você pode ter sua antiga vida de volta, porém não comigo.

            __Eu não quero nenhuma vida sem você. Do que você está falando, Dan?! Do Marcelo?! Enquanto você me quiser ao seu lado é onde eu estarei. A não ser que você não queira...

            __É claro que eu quero. É tudo o que eu quero. Mas se tudo se resolver com o Silas, você estará livre. Eu nunca estarei, e não sei se eu sobreviveria em outra vida que não nessa que eu levo. E não posso exigir que você me siga. Eu vou entender.

            __Eu já disse o que você precisa entender, que eu nunca vou me separar de você. __Sussurro o abraçando, o fazendo se deitar ao meu lado. Acaricio seu rosto cansado, o beijando quando ele me puxa para mais perto dele.

            __Ah, Manuela...__Suspira beijando meus cabelos, com suas mãos deslizando por minha pele que queima ao seu mínimo toque. __Eu preciso confessar algo a você. Eu espero que você me perdoe...

            __Dan, eu não preciso perdoar nada do que você tenha feito no passado. __Declaro me abraçando a ele quando parece querer se afastar, me encarando com um ar sério. __Eu não me importo. Só me importa o agora. E eu não me recordo se já estive tão feliz na minha vida como estou nesse momento.

            __Ah, Manuela... Não deve ser saudável o tanto que eu amo você.

            __Nunca ouviu falar de que nada que é bom é saudável? __Brinco o beijando, não mais me desvencilhando do seu abraço, nem mesmo quando adormecemos extasiados.

 

Distraída ajudando Adelaide na cozinha na preparação do almoço, enquanto ela me delicia contando histórias engraçadas da infância de Dan, o vejo entrar incomodado se dirigindo ao nosso quarto, apenas me destinando um rápido olhar.

Desculpando-me de Adelaide, que também percebera a apreensão do filho, o sigo o encontrando na mesma posição que o encontrara na noite anterior, com a cabeça entre as mãos, e os braços apoiados nos joelhos.

__O que houve, Dan? Más notícias?! Silas? A polícia?

__Não. Tudo permanece calmo. Por isso mesmo, acho que está na hora de irmos embora. Antes que tudo complique.

__Por quê? __Indago tentando sem sucesso conter meu desapontamento.

__Não é nada. Eu estive contatando algumas pessoas e soube de alguém que pode nos alugar um avião particular. Para nós sairmos do país. Não comente nada com a minha mãe ainda. Ela está tão feliz conosco por perto, e nada está certo. Melhor não fazê-la sofrer por antecipação. Eu preciso negociar com o proprietário, e ver alguns detalhes com ele, sobre quando poderemos decolar sem que regulem nosso vôo, e sobre a situação do tempo e do tráfego. Nem a polícia nem Silas podem desconfiar de nada.

__Para onde nós vamos?

__Eu ainda estou vendo, mas confie em mim. É melhor que você não saiba por enquanto. Até eu organizar tudo.

__Tudo bem.

__Eu vou precisar viajar agora para conversar com o proprietário. É aqui perto, se der tudo certo, embarcamos depois de amanhã. Tem algum problema se você ficar com meus pais? Eu volto ainda hoje.

__Henrique, eu não quero ser um peso, mas eu queria ir com você. Sempre que nos separamos, geralmente por minha culpa, tudo vira um caos. Eu tenho medo do que possa acontecer numa próxima vez.

__Você não é peso nenhum. E talvez ele acredite que somos apenas um casal bem intencionado e aventureiro, querendo fugir das fiscalizações apenas por diversão. E nós podemos aproveitar e visitar um lugar que eu quero que você conheça antes de irmos embora.

 

            Dan estaciona, após conduzir o carro através de um aclive, no que parece ser uma pequena serra na parte mais campestre da cidade, coberta de árvores que perdem suas folhas secas pela força do vento, as quais se espalham pelo chão, criando um tapete marrom sobre a grama verde.

Sorrio maravilhada com a paisagem, quando Dan me ajuda a percorrer o caminho íngreme que leva ao topo da encosta. O fôlego me falta, não apenas pelo ar que se torna quase rarefeito, mas pela miragem que se apresenta à minha frente. As árvores se tornam mais escassas à medida que nos aproximamos do despenhadeiro, deixando uma área descampada, onde Dan repousa uma toalha e uma cesta de alimentos enviadas por sua mãe.

Não resisto a olhar abaixo do abismo, e encontro o rio agitado de águas límpidas se debatendo contra as pedras que formam a base do rochedo. Olhando para o horizonte consigo ver toda a cidade de Dan, assim como as cidades ao redor. Eu o vejo também olhar a região admirado, com uma intensidade na expressão que me faz temer os efeitos que o local possa causar em seus sentimentos.

Dan me abraça ao perceber que o observo preocupada, sabendo que isso me trará novamente a calma, quase impossível de não existir em tão belo lugar.

__Eu costumava vir aqui quando era criança. __Confidencia quando sentamos sobre as folhas, ignorando a toalha e a cesta que sua mãe nos obrigara a trazer. Talvez nos lembremos dela depois. __Eu achava que podia ver todo o mundo daqui. Pelo menos era o máximo que eu conseguia ver dessa cidade. Não sei o que minha mãe disse a você sobre mim, mas eu acho que era um garoto muito sonhador. Queria ser importante, que as pessoas me admirassem. Sempre amei meus pais, mas considerava suas vidas medíocres. Eles não tinham qualquer objetivo, apenas viver um dia após o outro. Eu queria que todos se lembrassem de mim, por um talento especial que eu tivesse, mas que eu ainda não tinha descoberto. Até que eu descobri que meu talento era justamente o oposto, ser invisível. E então eu apenas o desenvolvi. Mas eu não quero contar a você uma história triste, Manuela.

__Eu não me importo. __Sorrio me apertando em seu abraço, repousando minha cabeça em seu ombro, quando nos deitamos sobre a grama.

__Mas eu sou o que sou por minha escolha. Eu não me importava de qual fosse o meu talento, só queria ser o melhor de todos nele. E consegui. Eu não me arrependo se matei algum inocente, já disse isso a você. Talvez até tenha os ajudado, pois se alguém me pagou para matá-los, coisas piores aconteceriam a eles, se eu não tivesse o feito.

__Dan, mas não é você quem decide. É um processo natural.

__Eu sei. Mas o que eu faço não deixa de ser natural. Quantas pessoas não morrem em acidentes, até engasgadas? Ou mesmo por fome ou sede? Eu ajudo a manter o equilíbrio.

__Mas, Dan. Você não pensa em parar? Agora que estamos juntos?

__Eu não posso lutar contra isso, Manuela. Mesmo que eu parasse agora, não apagaria tudo o que eu já fiz.

__Mas evitaria novas mortes, Dan.

__Há mortes que não podem nem dever ser evitadas. Silas, por exemplo. Você só será livre quando ele estiver morto. Nenhuma morte é justa, mas para você sobreviver, ela é necessária. Os crimes dele justificam sua morte, então justificaria a minha, a de seu pai.

__A minha. __Ouço-me murmurar. __Eu matei dois ou três homens, ainda posso ver os rostos deles.

__E foram mortes necessárias, em legítima defesa. Toda morte é situacional, a morte é o equilíbrio. Para cada pessoa que nasce uma morre, e não apenas no verdadeiro sentido da palavra. A cada pessoa que eu executo, uma ou várias vidas são salvas, as de quem me pagou para matá-la. Todas as pessoas idolatram o nascimento, renegando a morte como uma punição, mas ela é igualmente necessária.

__Talvez você esteja certo, Dan. Mas elas não deixam de ser injustas. Tantos sonhos desperdiçados, tantos corações partidos, e lágrimas derramadas a cada morte.

__Mas elas não existiriam se as pessoas parassem de fechar seus olhos à morte, e a encarassem como um fato, uma verdade que atinge a todos, e começassem a aproveitar a vida, um dia após o outro, um momento após o outro. E depois de fugir dos meus pais e da minha antiga vida, acabei descobrindo que eles estavam certos. Os planos são importantes, assim como os sonhos, mas eles são construídos a cada dia, e não num dia só. Cada dia, cada minuto, cada segundo pode mudar a sua vida inteira, e só nos resta não desperdiçarmos o tempo, nosso verdadeiro executor, tão invisível quanto eu.

__Para mim, você nunca foi invisível.

__Obrigado, Manuela. Por ter feito a minha vida valer a pena, por ter mudado tanto a minha existência de um jeito tão bom, mudando todos os meus planos e até algumas crenças. Obrigado por ter me amado quando nem eu mesmo conseguia.

__Dan... Quando eu achei que a minha vida tinha acabado, quando a vida me mostrou a sua pior e mais cruel face, foi você que salvou a minha vida. Não apenas me dando proteção, como você tem feito por todos esses dias, mas me dando motivos para viver. Obrigada por ter me deixado conhecer você, a pessoa maravilhosa que é, mas que esconde de todos. Obrigada por ter me mostrado, ter me deixado entender e amar você.

            Eu encontro o olhar sereno de Dan e seu sorriso reluzente ao ver minha expressão apaixonada. O seu rosto apenas torna a paisagem ainda mais maravilhosa, com as múltiplas cores que os raios de sol refletem em nossas peles que se confundem nos unindo como num arco-íris. O vento bagunça meus cabelos seguros nas mãos firmes de Dan, quando ele me beija, fazendo com que as folhas secas espalhadas sobre a grama dancem ao nosso redor, nos envolvendo num redemoinho.

            Posso ouvir o canto dos pássaros, se confundindo com o som dos galhos das árvores que se curvam em reverência à ventania, com o lamento das águas se chocando contra as pedras, e com os suspiros de nossas respirações entrecortadas.

            O cheiro da grama ainda molhada se mistura às diversas fragrâncias das flores silvestres espalhadas pelo chão, nascidas como que por pura arte da natureza. Todos esses perfumes se combinam ao aroma natural de Dan, quando eu o abraço, impedindo-o de se afastar, com seu corpo protegido no meu.

            As nuvens se espalham pelo céu como algodão, na sua caminhada lenta e plácida. E eu me sinto como se estivesse deitada sobre elas, sentindo sua maciez diáfana sob o meu corpo e o de Dan unidos num só. Elas se tingem num espetáculo ainda mais belo, num caleidoscópio flamejante, quando o sol em todo seu esplendor se despede dando uma última mostra da sua absurda beleza, antes que vá iluminar outras partes do mundo, nos prometendo que retornará no dia seguinte, mas nos dando uma imagem magnífica, para que caso não volte, nós nunca nos esqueçamos dele e de sua beleza arrebatadora.

E eu me abraço a Dan quando vejo o céu se explodir em minúsculas partículas caindo sobre nós, não num pedido de proteção, mais querendo compartilhar com ele esse momento de felicidade descomunal. Eu encontro seu olhar exultante, e sorrio quando o vejo fazer o mesmo, sabendo que ele também vira, ouvira e sentira o mesmo, com a mesma intensidade. E então eu finalmente percebo, algo que ainda não era claro para mim.

Eu e Dan somos um só, desde o começo, desde aquela festa em que nos conhecemos, ou até mesmo antes. Um laço inquebrável nos envolve, e por mais que nos separemos, o esticando até não poder mais, ele se retrai nos fazendo colidir em explosões. Por isso a tensão que sempre nos unira. Por isso os caminhos que sempre se encontravam. Como ímãs, como pólos opostos se atraindo sem poder lutar contra as leis da física e da natureza.

E então eu me abraço a ele, agradecendo a natureza por exercer em nós todo o seu poder. Pedindo que essa energia que nos une em laços tão fortes nunca se consuma.

domingo, 11 de novembro de 2012

Capítulo 24 - Raízes


Três dias. Divididos entre os caminhos da rodovia, tentando parecer despreocupados ao passarmos pelos postos policiais, e entre restaurantes e hotéis à beira da estrada, fugindo quando surgiam os noticiários e desviando de todos os olhares, mesmo os não desconfiados.

            Dan parece cansado por não ter me permitido dirigir, receando que chamássemos atenção por outros motivos. Acaricio seu rosto e seus cabelos, recebendo seu sorriso fatigado, o qual retribuo, encontrando seu olhar cúmplice. Desde que me pedira, eu evitara me desculpar por estar lhe fazendo tanto mal, e ambos parecemos mais calmos, embora eu saiba que por dentro ainda estejamos apreensivos.

            __Você está com medo? __Sussurro me aproximando dele, quando diminui a velocidade ao entrarmos na pequena cidade em que crescera, e acariciando seu rosto cujos ferimentos começam a cicatrizar. __De se encontrar com seus pais? É natural ter medo... __Continuo quando ele permanece em silêncio. 

            __Um pouco. __Confidencia, me envolvendo em seu abraço. __Não é medo. É receio.

            __Tem diferença? __Pergunto sorrindo, enquanto passamos pelas ruas de paralelepípedo com suas casas quase idênticas.

            __Espero que tenha. Chegamos. __Diz parando o carro em frente a uma humilde, mas bem-cuidada casa. Eu sorrio ao vê-la, com sua cerca branca a rodeando, e seu belo jardim com os mais diversos tipos de plantas de inúmeras cores e tamanhos.

            Eu abraço Dan quando ele me ajuda a sair do carro e contemplo sua face ansiosa. Aperto sua mão que repousa em minha cintura, e percebo que não está úmida, mas tensa, apertando a minha de volta, quando beija meus cabelos num gesto de carinho.

            A cidade, pelo que eu pudera ver no caminho, é simples e campestre, com modestas, mas largas moradias, com parques florestados e praças movimentadas pelas crianças, devendo não ter mais que dez mil habitantes. A casa da família de Dan se situa numa das principais e aparentemente tradicionais ruas, ainda de chão de pedras, assim como o caminho que leva a casa, em meio ao jardim, a partir do portão de madeira.

            Ainda me envolvendo em seu abraço, me permitindo sentir as batidas aceleradas do seu coração, Dan abre sem dificuldade o portão me conduzindo pela passarela, até a porta entreaberta. Ele bate palmas duas vezes, fazendo com que passos apressados venham em nossa direção.

            A cena que se segue é rápida e eu a contemplo estarrecida. Uma humilde senhora, bonita com seus cabelos e olhos muito escuros, aparentando seus quarenta e cinco anos, embora seu rosto transpareça a fadiga de muitos anos de trabalhos domésticos, surge à porta. Ela nos olha curiosa, com seus olhos argutos que me lembram os de outra pessoa, secando suas mãos roliças num pano de prato. Seus olhos encontram os de Dan, e eu o sinto se enrijecer subitamente, com seu braço mais apertado contra minha cintura.

            Os olhos da senhora se tornam marejados e a vejo aflita começar a chorar, com seu corpo trêmulo se agitando de emoção, gritando e roubando Dan do meu abraço.

            __Henrique, meu filho! Henrique... Henrique... Por que você me deixou? __Grita contemplando e acariciando o rosto de Dan, no mínimo trinta centímetros mais alto, embora ele esteja inclinado sobre a senhora recebendo timidamente seus beijos.

            Eu sorrio emocionada, não me impedindo de chorar, admirando a visão de Dan embaraçado com as demonstrações amorosas descomedidas da mãe, a envolvendo em seu abraço desajeitado, com os olhos marejados de lágrimas que contém com esforço.

            __Meu filho, como você pôde fazer isso comigo? Eu quase morri quando você desapareceu! Eu o amo tanto. Como você pôde fazer isso com sua mãe? __Pergunta entre lágrimas, ainda abraçando e puxando o rosto do filho para perto de seus beijos afetuosos. Eu a vejo segurar o rosto de Dan próximo ao seu com suas mãos vacilantes, acariciando seus cabelos e o admirando maravilhada. Seus olhos úmidos avermelhados pelas lágrimas brilham extasiados com a imagem de seu amado filho, como se quisessem retê-la antes que se dissipasse como mágica.

            __Calma, mãe. __Ouço Dan dizer com a voz embargada, os olhos reluzentes ao contemplar sua mãe, enquanto tenta se desvencilhar acanhadamente do seu abraço. __Sou eu, Henrique. Eu nunca quis magoar a senhora.

            __Por que você me deixou? Foram aqueles seus amigos delinqüentes, não foram?

            __Mãe. __Começa Dan, encarando sério o olhar materno. __Eu quis ir embora. Eu já tinha dito a senhora inúmeras vezes que esse não era o meu lugar. Eu queria descobrir o mundo.

            __Mas você era uma criança! Só tinha doze anos! Nem tinha terminado seus estudos! O seu pai me culpou tanto, dizendo que eu o havia mimado demais. Mas eu só lhe dei amor.

            __Mãe, não vamos discutir isso agora... __Diz, olhando timidamente para mim num pedido de desculpas, se dando conta da minha presença. __O pai está aí?

            __Está trabalhando. Você vai ficar muito tempo? Quem é ela? __Pergunta olhando para mim de uma forma simpática, embora eu estremeça ao sentir que assim como Dan ela é capaz de ler minha alma com apenas um olhar, avaliando-me dos pés à cabeça.

            __É a minha noiva, Manuela.

            __Noiva?! __A senhora exclama antes que eu faça o mesmo. __Vocês vão se casar?!

            __Ainda estamos planejando. __Ouço Dan dizer dando-me um olhar cúmplice na tentativa de me acalmar dizendo que me explicará tudo depois, indo ao carro pegar nossas malas.__Podemos entrar? Vamos passar apenas alguns dias. Nós ficamos no mesmo quarto.

            __Mas você é muito novinha, Manuela. Eu sou Adelaide, caso o Henrique não tenha falado. __Sorri me dando um abraço apertado. __Você tem um jeito de menina rica... Não repare na bagunça, e a casa é muito simples. O Henrique poderia ter avisado que você viria, mas eu não o vejo há dez anos. Como um filho pode fazer isso com uma mãe? Duvido que você trate seus pais assim.

            __Eles estão mortos. __Murmuro num sorriso triste.

            ­­__Oh! Eu sinto muito, minha filha. __Lamenta me abraçando e beijando meu rosto carinhosamente. __Tão novinha e já órfã.

            __Está bem, mãe. __Ouço Dan pedir quando retorna com nossas malas. __ Você está assustando a Manuela. Ela está muito cansada da viagem. Vamos. __Sussurra para mim, me dando um rápido beijo antes de entrarmos na casa.

            Assim como por fora a casa é simples e aconchegante por dentro, com uma larga sala, mobiliada com um conjunto de sofá coberto por uma colcha de retalhos, rodeando uma mesa de centro sobre um tapete colorido e uma televisão numa estante de livros. Eu sigo Dan que se dirige ao corredor que dá para a cozinha, fazendo Adelaide se desculpar pela pilha de louça ainda na pia voltando para terminá-la, e para dois quartos, num dos quais o vejo entrar.

            É o mesmo quarto que ele deixara há dez anos, ainda com a colcha do super-homem e pôsteres de super-heróis na parede. Há uma escrivaninha e um guarda-roupa numa madeira já envelhecida, e prateleiras repletas de bonecos e modelos de carros, motos e aviões. Ele descansa as malas no chão, sorrindo para mim envergonhado.

            __Isso é constrangedor.

            __Dan, é um quarto como o de qualquer outro garoto de doze anos.

            __E eu me pergunto por que apenas eu me tornei o que sou. __Lamenta sentando-se na cama abatido.

            __Dan... Quer dizer, Henrique...__Inicio sentando-me ao seu lado e segurando seu rosto próximo ao meu. __Poderia ter acontecido a qualquer um, mas você pode mudar isso.

            __Eu não posso, Manuela. Você ouviu o Silas. Nessa vida, não há volta. Você viu o que aconteceu... __Pára antes de terminar a frase.

            __Com meus pais. Não precisa acontecer o mesmo com você. Eu não vou permitir que aconteça. Vamos viver um dia de cada vez. Talvez voltando para cá, para suas raízes, você descubra onde se perdeu.

            __Desculpa, não quis interromper. __Diz Adelaide, sorrindo embaraçada ao surpreender nosso beijo.

            __Não, tudo bem, senhora Adelaide.

            __Pode me chamar só de Adelaide, filha. Eu vou providenciar o almoço.

            __Quer ajuda? __Ofereço ignorando o olhar de censura de Dan.

            __Não, filha. Melhor vocês descansarem. O seu pai só chega lá para as seis horas da noite, quando acaba o turno dele na fábrica.

            __Certo, mãe. Eu queria roupas de cama novas e toalhas. Ou eu posso comprar no centro.

            __Não, Henrique. Eu já pego para vocês. Eu mantive o quarto do mesmo jeito de quando você foi embora. Eu sabia que você voltaria um dia, só tinha medo de não estar viva quando esse dia chegasse.

            __Mãe, não fica assim. __Pede Dan abraçando a mãe que começa a chorar.

            __Desculpa. O que a sua noiva vai pensar de mim? Que eu sou uma velha chorona. __Sorri me olhando envergonhada.

            __Você não é velha! Nem chorona! __Brinco, me levantando e sorrindo ao fazê-la sorrir gratificada ao se despedir. Eu ainda insisto pedindo para que fique conosco, com Dan, no entanto ela argumenta que a casa está uma bagunça, e que aproveitará nossa visita depois, uma vez que espera que demoremos. Dan me pede que desista, quando a vejo ir em direção à cozinha, dizendo que ela ainda não assimilara o seu retorno.

            __E essa história de noiva? __Pergunto quando o vejo fechar a porta, sem querer parecer ansiosa ou pretensiosa.

            __Desculpa. É porque só há apenas um quarto, que nem é de hóspedes na verdade. Minha mãe não permitiria que ficássemos juntos se fôssemos apenas namorados ou o que quer que nós sejamos. Espero que você não se incomode com a cama de solteiro. Ela nem é muito confortável. Eu posso dormir no chão se você quiser.

            __Não. Eu não durmo sem você abraçado a mim. Estou mal acostumada. Embora eu nem ao menos saiba definir o que somos um do outro.

            __Acho que nós somos praticamente marido e mulher, casados pelo destino. __Confessa sorrindo tímido.

            __Eu aceito. __Sussurro beijando seus lábios.

            __Eu também aceito. __Declara trancando a porta do quarto, e me carregando nos braços até a cama, enquanto eu tento conter minhas risadas para que sua mãe não nos ouça.  __E eu os declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva. __E então ele me beija.

 

            Quando saímos do quarto, algumas horas depois, a mãe de Dan ainda parece emocionada, ao nos servir dois pratos de comida, a qual parece realmente deliciosa. Sentada ao lado de Dan, à mesa da cozinha, me alimento com avidez, uma vez que não havíamos parado nem mesmo para o café da manhã.

            Saboreando mais uma porção, encontro o olhar cúmplice de Adelaide acompanhado de um sorriso maroto. E antes que eu possa entendê-los, a vejo se sentar radiante ao lado de Dan, segurando sua mão e a levando até os lábios para beijá-la.

            __Henrique, meu filho. Agora eu entendo porque você veio nos visitar depois de tanto tempo e porque pretende se casar com a Manuela, embora vocês ainda sejam tão jovens. Eu não acredito que você não me disse logo, esperando que eu adivinhasse! Ela está grávida!

            __Não! __Exclamo juntamente com Dan. __Não.

            __Realmente não está nos nossos planos no momento. __Ouço Dan dizer, me enviando um olhar de dúvida que é recebido pela minha perplexidade.

            __Ah. Realmente. Ela está muito magrinha para estar grávida. __Observa tristemente, levantando-se e trazendo uma jarra de suco para nos servir. __Heitor! __Grita chorando e se dirigindo à sala, enquanto Dan se levanta num ímpeto, deixando seus talheres caírem sobre a mesa de vidro. __Veja quem chegou. O Henrique voltou. Voltou!

            Eu também me levanto, acariciando a mão de Dan que permanece rígida sobre a mesa. Ele me olha inquieto, desviando seu olhar quando um homem de meia-idade, parecendo jovem para a idade, com os cabelos escuros que começam a se perder em meio aos cinzentos, um pouco mais baixo que Dan, mas que o encara com altivez, entra na cozinha, ainda em seu uniforme de trabalho.

            __O que você está fazendo aqui?! __Pergunta enfurecido, enfrentando Dan, cuja tensão aumenta. __Como você pode voltar depois de tantos anos, como se nada tivesse acontecido?

            __Eu vim ver a mãe e apresentar minha noiva. Mas posso ir embora se minha presença é um incômodo.

            __Noiva?! __E então encontro seu olhar frio, que me lembra o olhar de Dan quando irritado. __Você faz idéia de com quem está pensando em se casar, garota?

            __Eu amo o seu filho. __Ouço-me gaguejar encontrando o olhar perturbado de Dan, que parece grato pelas minhas palavras, e se dirige ao quarto para pegar nossas malas.

            __Henrique, você não vai embora. __Declara Adelaide, segurando o filho que pára ao ouvi-la. __Heitor, ele é meu filho e essa casa também é minha. Ele fica. E você também, Manuela.

            __Obrigada. __Murmuro em agradecimento.

            __Você não sabe o quanto sua mãe sofreu e se lamentou por todos esses anos. Todo seu aniversário e aniversário da sua partida era a mesma choradeira. É claro que ela lhe perdoaria. Não espere o mesmo de mim.

            __Eu não espero nada de você. __Dan responde o encarando com a mesma frieza. __Talvez eu não devesse ter voltado.

            __Pela primeira vez na vida você está certo.

            __Parem de brigar os dois. __Exclama Adelaide, sentando-se próxima a mim, com os nervos à flor da pele, e as lágrimas brotando de seus olhos. __Meu Deus! Eu amo tanto os dois, sempre foram tão parecidos, por isso que sempre houve tantas brigas. Dessa vez eu não vou permitir que isso se repita. O Henrique e a Manuela vão passar alguns dias, mas podem passar o tempo que quiserem. E vocês dois se esforçarão para não brigarem. Por mim. É só o que eu peço. Sempre fiz tudo pelos dois, agora façam alguma coisa por mim.

            __Tudo bem, mãe. Eu não me importo de ir embora. Nós podemos ficar em alguma pensão, e eu virei visitá-la.

            __Não! Essa casa também é sua! Você é meu filho! Aqui é o seu lugar! Heitor, isso é o que eu tenho pedido por todos esses anos, e você não irá impedir que ele se realize.

            __Tudo bem, Deli. __Heitor declara resignado, engolindo seu orgulho, assim como Dan. __Você não merece sofrer mais do que já sofreu por todos esses anos graças à ingratidão desse seu filho.

            __Heitor, você prometeu!

            __Não precisa, mãe. __Dan insiste abatido.

             __Henrique, você ficará aqui! Nós somos uma família novamente, ainda maior, não tire isso de mim.

            __Tudo bem, mãe, onde eu posso pegar a roupa de cama e eu agradeceria se nós pudéssemos tomar banho.

            __Estão no varal, meu filho.

            __Eu vou tomar banho antes. __Heitor diz indo ao banheiro. __ Sou eu que sustento essa casa, acho que tenho prioridade. E não tenho direito nem a comprar um carro novo como outras pessoas.

            Eu sorrio aceitando a cadeira que Adelaide me oferece quando ficamos a sós.

            __Sempre foi assim, mas eu sei que no fundo eles se amam muito. Só são igualmente teimosos e orgulhosos. Sempre essas brigas infantis. Doze anos. E eu não me importaria se tivesse sido por mais dez, se Henrique não tivesse nos deixado. Oh, Manuela, obrigada.

            __Por quê, Adelaide? Eu só tenho o que agradecer a senhora.

            __Manuela, eu sei que se o Henrique só voltou agora, você tem alguma coisa a ver com isso. Eu vejo o modo como ele olha para você. E fico feliz por você olhá-lo da mesma forma. Tão apaixonados. E eu posso ver o bem que você está fazendo a ele. __Sorri, segurando minhas mãos entre as suas e sussurrando para que ninguém mais a ouça. __Quando o Henrique foi embora, ele estava metido em más amizades, e eu tive tanto medo por ele. Do que ele poderia ter se tornado. Se envolver no mundo do crime. Mas graças a Deus isso não aconteceu. Se tivesse acontecido ele não estaria com uma moça de bem como você. Eu estou tão orgulhosa e feliz. E sinceramente espero do fundo do meu coração que vocês sejam muito felizes.

            __Eu também espero, Adelaide. E espero que a senhora e seu marido também sejam.

            __Eu falo por mim, Manuela. Eu nunca estive tão feliz em toda a minha vida. Com toda minha família reunida. A volta do Henrique é tudo o que eu tenho pedido por todos esses dez anos, em todos os meus aniversários, em todas as missas, todos os natais. Eu tinha tanto medo de que ele tivesse morrido ou que nunca mais voltasse. Mas ele voltou e é só isso o que importa. Muito obrigada.

            __Obrigada você.

            __O que vocês tanto conversam? __Indaga Dan sorrindo desconfiado ao entrar na cozinha com uma pilha de roupas. Eu o ajudo e o beijo, sob as risadas alegres de Adelaide, com a sua felicidade contagiante, que eu espero sinceramente que nunca acabe.