Sou despertada pelo
beijo de Dan, afagando meus cabelos. Minha mente ainda anuviada demora para
reconhecer a realidade à minha frente. Tudo se apresenta a mim como um sonho remoto,
porém o sorriso de Dan ao ver minha perturbação me demonstra que tudo realmente
acontecera.
Eu sorrio, e o beijo novamente, ruborizando e me
escondendo nos lençóis, ao perceber meu corpo descoberto, enquanto Dan já está
vestido. Ele sorri, me beijando mais uma vez.
__Manuela, eu não queria acordá-la, mas nós precisamos
ir. Eles já devem estar nos procurando pela cidade.
Avalio o quarto que permanece escuro, me permitindo ver o
rosto de Dan apenas pela claridade da lua que penetra pela janela. Eu ligo o
abajur no criado-mudo, me sentando enrolada nos lençóis.
__Ontem realmente aconteceu?
__Sim. __Dan responde avaliando apreensivo meu rosto, ao
se sentar à minha frente. __Você já está me odiando?
__Não! Nunca. __Sussurro acariciando e beijando seu rosto
ainda machucado. __Nunca. Eu amo você. Henrique. __Sorrio experimentando dizer
seu verdadeiro nome. __Henrique.
__Eu também amo você. É melhor você se vestir. Eu
preparei alguma coisa para nós comermos no caminho. A viagem será longa antes
de ser seguro nós pararmos.
__Certo. __ Respondo aceitando a roupa que ele me oferece
antes de sair do quarto se despedindo com um rápido beijo. Eu me preocupo por
ele estar voltando a sua personalidade habitual séria e cautelosa, sempre à
espera do pior.
Vestida, com os cabelos e rosto devidamente cuidados,
procuro por Dan na cozinha, encontrando-o se servindo de uma xícara de café.
Sento ao seu lado, aceitando outra xícara, e sorvendo a bebida que queima meus
lábios. Observo o seu rosto que transparece preocupação, com o olhar distante.
__O que houve, Dan? Você está... arrependido... por ontem?
__Não... __Responde fixando seu olhar sério em meu rosto.
__ Eu estou pensando no que vai ser de nós dois... juntos. Ah, Manuela. Você
sabe que eu nunca paro num lugar e essa é a minha vida. Tem certeza de que é
isso o que você quer?
__Sim, Dan. É o que eu mais quero. Eu quero você.
__Confidencio me levantando e o envolvendo em meu abraço. __Foi você mesmo que
me disse que temos que viver um dia de cada vez, tentando ser feliz. Ninguém
sabe se estará vivo no dia, hora, ou minuto seguinte. Muito menos nós dois com
toda essa confusão. Você é quem me faz feliz, quem me completa. Talvez eu não o
mereça, mas pagarei o preço que for necessário para ter você ao meu lado por
tanto tempo quanto for possível.
__Manuela, você não sabe o que está falando.
__Dan, não vamos discutir isso novamente. __Declaro
enfadada.
__Certo. __Diz com um ar de que ainda não desistiu da
conversa, se levantando. __Temos que ir. Já acabou?
__Sim. __Confirmo, deixando a xícara na pia, e carregando
minha mala para a sala, após recusar a oferta de Dan de fazer o mesmo.
Despeço-me da casa com uma última olhada, ao mesmo tempo
em que Dan conduz o carro popular que arranjara na oficina em direção à minha
antiga cidade, mas desviando antes de passar por ela, se dirigindo às outras
cidades ao redor.
__Qual é o plano? Você estava falando sério ontem à
noite? Sobre seus pais? Vamos visitar o cemitério deles? __Pergunto receosa,
tentando evitar tocar em algum assunto delicado.
__Eles estão vivos. __Confessa avaliando meu olhar com
cautela. __Desculpa, eu inventei aquela história. Eu queria que você me
odiasse, ou tivesse medo de mim. Já percebia que nós estávamos nos envolvendo,
e eu não queria que você confundisse as coisas.
__Dan... Já era tarde demais... Mas então qual é a sua
história?
__Eu fugi de casa. Meus pais viviam uma vida monótona e
humilde numa cidade interiorana e eu sempre quis desbravar o mundo. Então fugi
e não sei se encontrei o que procurava. Eles devem ainda morar no mesmo lugar,
e é mais seguro, para passarmos alguns dias.
__Será que o Silas vai nos procurar para sempre? Por que
você não conseguiu abrir o cofre, conseguiu?
__Consegui, mas não lhe disse para não destruir suas
esperanças. Não havia nada que me indicasse com quem ele estava negociando
ultimamente.
__Estava vazio?
__Não. Havia coisas sem importância.
__Eu queria ficar com elas, se não for nenhum problema. Ter
alguma lembrança do meu pai...
__Eu não peguei nada. Eu sinto muito, não pensei que você
pudesse querer.
__Tudo bem. Então agora vamos ficar fugindo o tempo todo?
Eu não estou reclamando... __Falo quando ele parece se sentir culpado. __É só
uma pergunta.
__Infelizmente sim, por enquanto. A única maneira de isso
acabar seria matar Silas, fazendo seu grupo de seguidores se dispersarem. Mas
isso é quase impossível. No entanto, não descansarei até você ser livre.
__Eu não me importo se eu estiver com você. __Dou um
sorriso triste me aproximando dele e beijando seu rosto.
__Eu me importo. E você também deveria. __Lamenta não
disfarçando a tristeza em seu olhar.
__Por favor, Dan... Pare de se preocupar tanto. Eu não me
importo. Relaxe um pouco, por favor.
__Está certo. Acho que já estamos longe o bastante. Você
quer almoçar? __Sugere se esforçando para sorrir, entrando numa pequena cidade,
ainda menor do que na qual estávamos. E eu aceito sem hesitar.
Distraída com o restante da comida que sobrara no meu
prato me deleito nas palavras de Dan. Apenas poder estar com ele, me aninhar em
seus braços, enquanto tento reprimir meus impulsos de beijá-lo a todo instante,
me deixa extasiada. Nunca pensei que poderíamos conversar sobre assuntos
habituais como o curso que eu planejara fazer na faculdade, e o que ele teria
feito se não tivesse tomado outros caminhos e me surpreendo ao descobrir que
faríamos o mesmo. Direito. Eu para saber os direitos e os deveres de cada
pessoa. E Dan para saber como burlar as leis.
Sorrimos ao imaginar como seria se tivéssemos nos
conhecido na faculdade. Seria tudo tão diferente, tão mais leve e inocente, sem
tantas dores nem feridas, mas imagino que sentiríamos o mesmo um pelo outro,
pelo menos eu sentiria. Para mim seria impossível não amá-lo em qualquer
circunstância que nos levasse a nos encontrar.
Eu não escondo minha surpresa quando Dan me confidencia
ter apenas cinco anos a mais que eu. Mas disfarço meu pesar ao imaginar o
quanto ele sofrera nesses vinte e dois anos, tudo o que ele já vira, sentira, e
até mesmo fizera.
__Tudo bem, Manuela. __Diz percebendo minha tristeza, me
beijando demoradamente, não se importando com a quantidade de pessoas almoçando
nas mesas ao nosso redor, na área interna do restaurante, protegidos do calor
do dia apenas pelos ventiladores de teto. __Eu não tive uma vida ruim. E ela só
tem melhorado desde que você surgiu.
__Mas Dan, você precisa executar pessoas. __Sussurro,
embora nossa conversa já esteja sendo naturalmente abafada pelo som alto da
televisão e das conversas dos demais. __E essa sua vida solitária... Eu me
sinto tão mal por você, pelo seu passado.
__Eu nunca vi problemas nenhum nessa minha vida. Eu podia
não ser feliz, mas também não era triste. Você estava certa. Eu tinha medo de
me envolver com as pessoas, de dar importância a elas, pois se eu as amasse,
permitiria que elas me machucassem. Mas com você nada que eu tenha feito
adiantou. Você destruiu todas as minhas defesas e grades, sem nem eu ao menos
perceber antes que fosse tarde demais. Eu sou grato por isso, embora a grandeza
do que sinto por você me assuste.
__Eu também estou assustada, Dan. Eu nunca me senti assim
antes, e sempre fui tão sensata. Mas eu não quero nem posso perder você. Dan,
você é a única verdade que eu conheço, e a melhor de todas. __Declaro o
beijando e o trazendo para perto de mim. Mas por pouco eu não perco o
equilíbrio quando Dan me afasta subitamente num misto de irritação e
preocupação.
Eu procuro sua expressão, tentando entender o que
acontecera, no entanto seu olhar parece distante, fixo em algo atrás de mim.
Procuro o que chama a sua atenção, e minha reação não é diferente da de Dan,
uma vez que o que vejo passar na televisão é completamente apavorante.
Todavia antes que eu comece a gritar ou a chorar, vejo
Dan deixar algumas notas em cima da mesa, ao mesmo tempo em que me carrega na
proteção do seu abraço para a saída.
Dentro do carro, enquanto Dan prossegue o caminho, minha
vista permanece escurecida, mostrando flashes de imagens minhas e de um desenho
do rosto de Dan num telejornal.
__O que foi aquilo? __Pergunto me esforçando em soltar
algum som, enquanto Dan conduz o carro agressivamente. __O que foi aquilo?
__O seu namorado. Ele nos entregou para a polícia. Agora
todos sabem que você está viva, e acham que juntamente comigo, algum amante
secreto, matou seus pais.
__O quê? Ele não pode ter feito isso. Não pode. Eu pedi
para ele não falar nada à polícia.
__Mas ele falou. Espere um pouco aqui no carro.
__Determina saindo e indo em direção a um jovem jornaleiro, do qual compra um
jornal. Quando volta, batendo a porta com violência e me entregando o jornal,
pede que eu o leia, conduzindo o carro novamente à estrada.
Ainda trêmula, assustada com seu repentino acesso de
fúria, observo as folhas, na qual está estampada uma foto minha abraçada a meus
pais que reconheço ter sido tirada na festa de formatura, e outra que mostra um
desenho não muito bem feito do rosto de Dan, juntamente com a manchete “A nova
Suzane?”, mas não consigo pronunciar qualquer palavra.
Dan percebe minha perturbação e o vejo procurar meu
olhar, tentando parecer mais calmo.
__Desculpa, Manuela. Eu só estou preocupado. Se a polícia
se envolver, tudo vai se complicar ainda mais. Eles têm até um desenho do meu
rosto. Nunca houve um retrato falado meu antes. Eu não quis ser rude com você.
Jamais seria minha intenção.
__Tudo bem. __Murmuro, surpresa por conseguir exprimir
algum som. __Eu só não acredito que ele possa ter feito isso. Ele realmente
acredita nisso?
__Talvez por você tê-lo deixado dizendo que me ama, e nós
já nos conhecíamos antes da morte dos seus pais. Se você não quiser ler, eu
leio depois. Não tem problema. Desculpa.
__Não. Eu leio. __Insisto ainda mal podendo olhar para o
jornal. __ “O caso da morte da família do rico empresário Agenor... Gonçalves
que já fora encerrado como um acidente com a fiação elétrica agora é reaberto
com notícias assustadoras, que apavorarão novamente todos os pais do país,
tomando proporções gigantescas.
Foi descoberto que a filha do casal, Manuela...
Gonçalves, aparentemente vítima fatal do acidente, está viva e agora... É a
principal suspeita da morte dos pais, auxiliada por um jovem matador de aluguel
conhecido como... Dan.
As informações provêm de fonte fidedigna, do próprio
ex-namorado da jovem, Marcelo Azevedo, namorado de Manuela na ocasião de sua
suposta morte. O jovem relatou à polícia e à imprensa que na virada do Natal
recebeu um telefonema proveniente da garota, tentando convencê-lo de que era a
própria.
O jovem emocionado por saber que a namorada ainda estava
viva foi na mesma hora para o endereço no qual haviam marcado um encontro, em
outra cidade próxima. Marcelo ainda relata que o encontro foi emocionado pelos
dois lados, dizendo que Manuela pareceu feliz ao vê-lo e o recebeu como sua
namorada, com beijos de saudades, contando a ele que seus pais não haviam
sobrevivido e era mantida seqüestrada por um matador de aluguel.
Marcelo se ofereceu para ajudá-la a fugir e pedir auxílio
à polícia e à justiça, mas a garota de apenas 17 anos parecia assustada, com
medo que Dan os encontrasse e os matasse. Por fim, conseguiu persuadi-la, mas
antes que fugissem foram capturados e torturados numa casa à margem da cidade,
em meio à floresta, por homens subordinados a Dan.
Numa fuga corajosa, os jovens escaparam. No entanto, no
meio do caminho, Manuela declarou não poder acompanhá-lo, desejando voltar para
seu seqüestrador, por amá-lo. O rapaz não entendeu, mas aceitou a decisão da
moça.
Declara ainda se lembrar de ter visto o assassino na
festa de aniversário de Manuela, onde os vira conversar. O rapaz não declara se
concorda com a hipótese mais verossímil, de que Manuela pagara, ou se envolvera
emocionalmente com o assassino, e por motivos pessoais ou por seus pais não
permitirem seu namoro, acabou condenando-os à morte.
Não se sabem os motivos que poderiam ter levado a jovem a
cometer tal crime hediondo, uma vez que os entrevistados apavorados com as
descobertas diziam que a família era aparentemente feliz. Seria um caso de
síndrome de Estocolmo, em que a vítima se apaixonou pelo captor? Ou um caso de
transtorno de personalidade anti-social, em que uma jovem bonita, inteligente,
e normal às aparências, não se importa com o próximo, sendo capaz de matar seus
próprios pais por não aprovarem seu namorado criminoso?
A polícia procura os suspeitos, pedindo a ajuda da
sociedade para punir os culpados desse terrível crime. Qualquer informação deve
ser...”
Eu paro subitamente, mal contendo meus enjôos quando
acabo a leitura. Caindo em prantos encontro o olhar de Dan que me encara
enfurecido. Sou incapaz sequer de tocá-lo ou pronunciar qualquer palavra.
__Eu não acredito nisso. __Dan fala parecendo mais calmo,
embora eu perceba o vigor com que seus braços se mantém na direção do carro.
__Dan, eu sinto muito. Eu nunca vou poder me perdoar por
ter envolvido o Marcelo nisso, mas eu nunca imaginei que ele faria isso. Nunca.
__Tudo bem, Manuela. A culpa não é sua...
__É claro que a culpa é minha! Por que eu não posso
assumir a culpa por nenhum dos meus inúmeros erros?! Desde que nós estamos
juntos eu só faço besteira! E agora todo mundo conhece você! Todos sabem que
você é o Dan!
__Calma, Manuela. __Dan tenta me acalmar, vencendo sua
própria irritação, numa tentativa de conter minha aflição. __ Isso piora as
coisas, mas tudo já não ia muito bem
mesmo.
__Mas agora acham que somos criminosos. E os seus pais?
Nós ainda iremos vê-los?
__Sim. Ainda é nossa melhor opção. E eles não sabem como
eu sou agora, além disso, o desenho não está muito parecido. Ainda temos alguns
dias de viagem, até lá espero que todos já tenham esquecido isso.
__Eu também espero. __Respondo mais tranqüila. __Eu nunca
quis bagunçar tanto a sua vida, Dan.
__Manuela, você foi a melhor coisa que aconteceu na minha
vida. Nunca diga isso. Eu amo você.
__Eu também amo você. __E então eu o beijo.
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