O
seu gosto é amargo, mas não de um jeito ruim, se tornando quase adocicado
quando alcança a parte mais profunda da minha garganta. Experimento novamente.
É um gosto diferente, e sinto que a cada vez que prová-lo, ficará apenas melhor,
se confundindo com o gosto natural da minha boca.
Satisfeita,
descanso a colher nas bordas da panela. Ouço um som agudo e abro sorridente o
forno, no qual o termômetro elétrico apita, indicando que o peru está pronto, e
pela sua coloração dourada no ponto certo, parece perfeito. Com a ajuda da luva
de cozinha o retiro do forno. Ele não está tão pesado, pois eu comprara um
pequeno, uma vez que seria apenas para mim e Dan.
Repouso
a bandeja na mesa da sala, a qual eu enfeitara com uma toalha de estampas
natalinas. Despejo o molho ainda quente, que acabara de experimentar, num
recipiente de vidro e o coloco também na mesa. Verifico novamente, toalha da
mesa imaculada, duas cadeiras, dois pratos, talheres, taças, recipientes com
arroz, salada, colheres para se servir. Tudo está pronto.
Indo
à cozinha, verifico o champanhe que permanece na geladeira para que não esquente.
Tudo pronto. Já passam das onze horas da noite. Véspera de Natal.
Indo
ao meu quarto, tentando controlar a ansiedade, me encaro no espelho. Cabelos
soltos e obedientes com seu brilho natural recuperado após tê-los lavado com
xampu e condicionador adequados para suas raízes oleosas e pontas secas.
Maquiagem leve, dando um ar natural, e disfarçando os machucados que já quase
haviam desaparecido.
Giro,
olhando todos os meus ângulos no espelho. O vestido que eu comprara é simples,
mas tem um brilho próprio, e sua cor escura realça minha pele clara, além de
sua forma valorizar meu corpo.
Reprimo
minha consciência quando ela me pergunta o que estou fazendo, verificando o
jantar, a casa e o meu aspecto pela milésima vez na noite. Dou um último
retoque no batom, que borrara quando eu experimentara o molho, e volto para a
sala. Sento numa das cadeiras encarando a porta pela qual Dan entrará a
qualquer momento.
Meu
pé balança inconscientemente dentro da minha sandália de salto médio que eu
comprara. Tudo bem que eu estou dentro de casa, mas é Natal, acho que posso
usar uma sandália mais chique nessa ocasião.
Onze
e meia. Ótimo. Sem sinal de Dan. A insegurança me angustia, talvez ele passe a
noite fora.
Atravesso
a sala, indo para o corredor no qual há as portas da cozinha, dos dois quartos,
um do lado do outro, do banheiro e da área de serviço, procurando sem sucesso
algo para aliviar minha ansiedade.
A
cidade para a qual nos mudamos é pequena, um pouco distante da minha antiga
cidade, mas acolhedora, com suas casas simples, porém espaçosas, separadas da
vizinhança pelos muros baixos. Eu já a visitara algumas vezes com meus pais,
para fazer compras, pelo seu menor preço e suas manufaturas, uma vez que no
comércio sua economia se baseia. As ruas e casas ainda estavam mais enfeitadas
que na minha cidade, pisca-piscas, lâmpadas coloridas, guirlandas e árvores de
natal nas lojas que abriam. Anjos de metal com luzes douradas se distribuíam
pelos postes da praça principal, onde uma árvore frondosa esculpida como um
pinheiro se estendia rodeada de pingentes brilhantes e multicoloridos.
Apesar
de a cidade ser primariamente comercial, havia lanchonetes, bares e
restaurantes, além de lindas paisagens naturais felizmente preservadas, árvores
dispersas pela cidade, algumas inclusive esculpidas nas mais diversas formas na
praça principal da cidade, em frente à igreja.
Dan
permaneceu silencioso pelo restante do caminho, não parecendo observar a
cidade, enquanto continuava seu percurso. Eu já acreditava que essa era apenas
mais uma das cidades pela qual nós passaríamos, antes de chegar ao nosso
destino, quando Dan desacelerou o carro ao chegamos à parte mais periférica da
cidade. Havia apenas casas esparsas e a partir dali a estrada continuava em
declive.
Estacionando
o carro, antes de descer para abrir o portão da garagem da casa, Dan me
informou, sem muitas palavras, que ficaríamos alguns dias. Era bom entrar numa
casa novamente após passar tantos dias quase vivendo na estrada. Ela parecia
arejada com um pequeno jardim ao lado da garagem apertada, e suas amplas portas
e janelas baixas de madeira.
Carregando
minha mala, atravessei a porta da casa, me deparando com a sala, mais espaçosa
do que a da casa na qual eu ficara com Dan. Havia um conjunto de sofá próximo a
uma estante de livros com uma televisão, além de uma mesa e algumas cadeiras,
numa espécie de sala de jantar improvisada. Dan me informou que fora aqui que
ficara na época em que nos conhecemos, e ainda tinha alguns meses de aluguel
pagos. Surpreendi-me por haver dois quartos, se apenas Dan morara aqui, porém
era a única casa já mobiliada disponível, pois os donos estavam viajando,
segundo o que me disse.
Meu
quarto era quase aconchegante com um guarda-roupa com espelho, uma cama de
casal confortável, com criados-mudos, abajures, cômoda, largas janelas com
cortinas de tecido, ar-condicionado, além de ser uma suíte, assim Dan não mais
precisaria ver meu terrível aspecto pela manhã.
Guardei
minhas poucas roupas, numa das gavetas, esperando que Dan não aparecesse e me
impedisse, dizendo que logo iríamos embora. Distribuí meus objetos pessoais
sobre a cômoda, ajeitando-os, e sentindo-me quase no meu quarto. Um otimismo me
invadira desde que eu me conformara e parara de lamentar minha antiga vida que
não voltaria e tentei aproveitá-lo.
Indo
a sala, me deparei com Dan que já se preparava para sair.
__Aonde
você vai? __Indaguei me impedindo de me preocupar por ele estar acordado há
mais de vinte e quatro horas.
__Ao
escritório do seu pai, reconhecer o território. __Respondeu já se dirigindo à
porta, tendo trocado a camiseta por uma mais social.
__Eu
posso ir com você?
__Eu
já disse que não. E ao escritório do seu pai?! É óbvio que eles reconheceriam
você.
__Eu
posso me disfarçar. E apenas me achariam parecida. Ninguém acreditaria que
estou viva. E por que não reconheceriam você? Muitas pessoas da minha cidade
viram você na minha festa.
__Podem
ter me visto, mas não realmente prestado atenção. Duvido que se lembrem de mim.
Essa é outra qualidade minha. Eu sou quase invisível.
__Mas
eu vi você na minha festa, e quando você estava saindo também. E mesmo que tudo
aquilo não tivesse acontecido, eu ainda me lembraria de você. Você é diferente...
__Terminei a frase num murmúrio ao imaginar como ele interpretaria tal
declaração.
__Espero
que isso seja apenas com você. __Redargüiu parecendo incomodado. __E acho
melhor você não sair da casa, mas você não está presa. __Concluiu deixando uma
chave da casa sobre a bancada da janela, próxima à porta, por onde saiu sem se
despedir.
Ele
chegou apenas no início da noite sem muitas notícias. Retornando nos dias
seguintes à cidade, dando-me permissão para que apenas almoçasse no restaurante
próximo e fizesse algumas compras no supermercado, ao me deixar um de seus
cartões de crédito, algumas notas de dinheiro e minha identidade falsa para
qualquer eventualidade.
A
maioria dos arquivos do meu pai era comum, negócios da empresa de investimento
antigos e sem importância. Dan ainda conseguira invadir o escritório do meu
pai, no entanto, o cofre que encontrara e abrira estava vazio, o que apenas
comprovava que mais alguém havia vasculhado a sala à procura de informações.
Ele evitava me contar detalhes, contudo havia outro cofre que não conseguira
abrir. E eu me esforçava em procurar possíveis senhas sem sucesso.
Eu
percebi que ele começava a considerar tal tarefa sem muitas chances de êxito, e
me esforcei para ajudá-lo. Entretanto, os dias passaram em silêncio,
interrompidos apenas pelas minhas idéias súbitas da possível senha, oito
letras, sem números.
No
táxi que me levava ao restaurante, um diferente a cada dia, para evitar que
lembrassem meu rosto, o taxista de sotaque espanhol, me cumprimentou com um
feliz natal caloroso, sorrindo ao me ver confusa por já ser dia 24 de dezembro.
Um sentimento de nostalgia me invadiu, enquanto eu admirava as pessoas passando
pelas lojas sorrindo com seus familiares e amigos, e então me decidi a fazer
algo especial. Dan era minha família, e eu lhe devia eterna gratidão, além de
ele estar com dificuldades.
Eu
nunca aprendera a cozinhar, no entanto enquanto percorria as prateleiras do
supermercado, me esforçava para lembrar quando fazia compras com minha mãe. Era
divertido vê-la escolher rigorosamente os ingredientes dos pratos que preparava
em ocasiões especiais. Enquanto entregava as compras a Juan, o taxista que
colocava as sacolas no porta-malas, desejava que Dan não me recriminasse por
ter usado seu dinheiro para futilidades, como talvez ele imaginasse.
O
movimento na cidade era intenso, com todas as pessoas deixando para comprar na
última hora seus presentes de natal, e num impulso repentino me vi adentrar uma
loja de roupas, envergonhada por ainda vestir o vestido que Dan comprara em
algum supermercado. Controlei meus gritos de excitação ao admirar as peças de
roupa. Nunca fora viciada em compras, mas elas sempre foram uma boa terapia.
Um
vestido mais lindo que o outro, e eu podia sentir, que onde quer que minha mãe
estivesse me aprovaria nesse momento. Experimentei blusas, sandálias, vestidos,
calças, sem conseguir me decidir. Até que o vi. O vestido perfeito para a
sandália que eu até já escolhera. Simples, mas sob medida, se ajustando
perfeitamente ao meu corpo. Na altura perfeita das minhas coxas, nem muito
curto, nem muito puritano. Apertado na cintura, e se encaixando perfeitamente
em meus seios, seguros apenas por suas finas e delicadas alças.
Ainda
sorrindo, tentando reprimir minha imaginação que fantasiava a respeito do que
Dan pensaria ao me ver arrumada, entreguei a sandália e o vestido para a
vendedora que aprovou minha compra, desejando que eu tivesse um Natal
maravilhoso. E então senti meu ar faltar. Não por qualquer futilidade como
compras ou a sandália mais perfeita. Era algo assustador, e não pude disfarçar
meu pânico para a atendente, que me ofereceu um copo de água, o qual recusei
querendo fugir dali. Era como ver um fantasma, mas no caso, o fantasma era eu.
Luana
e Matheus entravam na loja abraçados. Ela saltitava, com os cabelos mais curtos
balançando aos seus movimentos, e seu olhar brilhante ao admirar tudo e todos.
Ela dava gritos de excitação ao ver os vestidos, os quais eu antes reprimira, com
os braços rodeando o pescoço do namorado, que encantado sorria timidamente. Eu
escondi meu rosto dentro dos meus cabelos, recebendo minhas sacolas e saindo
como um raio da loja.
Correndo
pela rua, contendo as lágrimas, que traiçoeiras haviam aparecido sem o meu
chamado, entrei numa livraria para recuperar o fôlego. Eu estava feliz por ela,
tentava me convencer. Por todos os anos que eu a conhecera, desde a infância,
nunca a vira tão radiante. Assim como Matheus, que parecia imensamente feliz,
ruborizando a cada grito da namorada. E não pude me conter de invejá-la.
Luana
que sempre fora a mais pessimista das minhas amigas, que relutava em acreditar
na beleza da vida, agora a transbordava. O seu sorriso e seu ar juvenil, com
todos os sonhos e o mundo inteiro a seus pés. A paixão que transparecia em seu
sorriso, no seu olhar sonhador e até mesmo na sua respiração.
Eu
a invejei. A antiga Manuela era como ela, sonhadora, feliz, com o amor
transbordando de seu peito. Mas então eu me repreendi por tê-la invejado. Se eu
tivera que amadurecer tão rapidamente, ficava feliz e desejava que ela pudesse
viver a ilusão de uma vida perfeita por muito tempo.
E
então, quando as lágrimas que há pouco haviam sido derramadas desapareceram,
subitamente percebi que ficava cada vez mais parecida com Dan. Cética e
racional. E então saí da livraria, sorrindo para a vendedora que ficara
preocupada com a forma que invadira a loja, e andei calmamente com minhas
sacolas até encontrar Juan, descansando num bar, pedindo a ele que me levasse
para casa.
Meus
pensamentos são subitamente surpreendidos pela chegada de Dan. Ele retira seu
casaco, descansando-o em seu braço, deixando à vista sua camiseta preta
apertada, a qual revela os contornos dos seus músculos bem trabalhados, numa
perfeita combinação com seus jeans escuros, e então me encara surpreso. Vejo
seus olhos rapidamente percorrerem toda a sala, a mesa enfeitada com as
comidas, as taças, os talheres, minha sandália, meu vestido e enfim meu rosto.
É
como estar sendo avaliada esperando sua nota, e eu estremeço ao perceber que
estou sendo reprovada.
__Qual
é a piada? __Dan pergunta sem parecer estar achando graça, apenas aborrecido e
cansado.
__Feliz
Natal! __Ouço-me dizer com minha voz falha para minha eterna vergonha. Nunca
havia me sentido tão ridícula antes, contudo me empenho em manter meu sorriso
artificial no rosto.
__Natal?!
De todas as coisas com as quais você poderia estar se preocupando, você se
concentrou no Natal?! __Indaga incrédulo fitando-me quase enraivecido.
__Foi
você mesmo quem me disse para curtir o momento... __Rebato disfarçando sem
êxito minha decepção. __É o que estou fazendo. É véspera de Natal! Tempo de
paz...
__Nós
estamos no meio de uma guerra. E você é a causadora. E eu não acredito em
Natal! De onde você tirou essa idéia?! Depois de tudo, você ainda acredita
nessas baboseiras?
__Então
ignore o Natal. __Continuo numa tentativa frustrada de não ter minha noite
destruída. __É só um jantar, que parece realmente bom. Você poderia pelo menos
comer alguma coisa.
__Eu
estou sem fome... __Conclui voltando à sua impassibilidade habitual.
__Eu
comprei champanhe, se você quiser. __Insisto começando a me levantar da cadeira.
Nada está funcionando como o planejado, mas eu não desisto fácil.
__Como
você comprou uma bebida alcoólica? __Pergunta me enfrentando e me retendo em
minha cadeira.
__Eu
tenho uma carteira que diz que tenho 18 anos, esqueceu?! E, fala sério, é
champanhe! Não é nenhum crime.
__Que
roupa é essa? Você vai sair?
__Não.
É Nat... Tudo bem, é um jantar especial...
__Manuela,
você está de batom? __Pergunta, mais afirmando com um ar aborrecido e alerta. __O
que você está tentando fazer?
__Eu
estou tentando ter uma noite agradável! __Exclamo levantando-me da cadeira, e
me equilibrando nos meus saltos, não mais me importando em salvar uma noite já
perdida. Eu realmente me esforçara em dar um momento agradável a Dan, sem
executores, assassinatos, cofres, nem segredos. Apenas nós dois comemorando o
Natal. __O que parece ser impossível na sua companhia! Droga! Eu estou tentando
agradecer tudo o que você tem feito por mim. Fiz um bom jantar, e quis me
vestir à altura. Mas tudo bem. Tudo esfriou. Tudo já deve estar uma droga
mesmo. __Choramingo, não mais me preocupando que minhas lágrimas infantis
possam borrar minha maquiagem, retirando as bandejas. No entanto, antes que
possa levantá-las da mesa, sinto a mão de Dan segurando firme meu braço.
__Tudo
parece ótimo... __Murmura, parecendo vencido. __Eu não estou nos meus melhores
dias. Ainda não descobri qual é a senha. E é quase impossível violar a porta do
cofre.
__E
você tem algum dia bom? __Pergunto encarando-o chateada, tentando sem sucesso
libertar meu braço preso em sua mão, reprimindo as lágrimas que forçam sua
saída.
__Não,
desde que eu inventei de te salvar. __Diz e eu posso quase ver um humor nos
seus olhos antes de desviar meu rosto.
__Sinto
muito. Agora pode me soltar. Eu tenho que tirar essa fantasia ridícula.
__Você
não está ridícula. __Ouço-o dizer baixo, como se não quisesse ser ouvido.
__Patética
talvez seja uma palavra mais adequada. Ou infantil. Ou mimada. __Prossigo e me
surpreendo com as lágrimas. Eu não acredito! Essa Manuela havia desaparecido! O
que ela está fazendo aqui agora me forçando a chorar?! Já não estou sendo ridícula
o suficiente?! Questiono inconformada a mim mesma.
__Sem
autoflagelação, Manuela. Eu realmente agradeço seu esforço. E você não é nada
do que está falando. Você é uma garota incrível.
__Você
não precisa mentir para mim. Eu não me importo. Você mesmo já disse que eu só
tenho lados ruins. Você vê algum lado bom em mim? __Indago procurando seus
olhos com os meus marejados, quando o percebo soltar meu braço, permanecendo em
silêncio. __Eu sabia. Você estava mesmo certo com a sua teoria de que ninguém
vale a pena.
__Você
vale a pena... Apesar de tudo.
__Apesar
de eu ser ridícula.
__Para
de dizer isso. É melhor nós comermos.
__Perdi
a fome. __Concluo, pegando um prato e estendendo a ele, enquanto permanecemos
em silêncio.
O
jantar estava realmente ótimo, uma vez que eu acabara comendo para tentar
aproveitar o resto da noite, que não parecia de todo perdida. Dan se ofereceu
para retirar a mesa, parecendo quase arrependido pela maneira com que recebera
a minha surpresa. Enquanto comíamos, não trocamos muito palavras, mas pelo
menos não discutimos nem nos machucamos, como era de costume quando
conversávamos.
Distraída,
contemplando a mesa de jantar já vazia, me assusto com o som dos fogos de artifício
que prenunciam o Natal. Corro para abrir a janela e me surpreendo por os
habitantes dessa pequena cidade terem esse costume, todavia logo meus
pensamentos se esvaem enquanto me maravilho com a dança das cores no céu negro
e estrelado, em suas diversas formas, alcançando alturas variadas.
Um
espetáculo criado pelos homens tentando imitar a beleza das estrelas cadentes,
com raios de luzes multicoloridas se espalhando pelo céu, e caindo como uma
chuva de prata em direção ao solo. Os sons dos estouros não mais me assustam e
me percebo lembrando meus pais, desejando que eles não me recriminem por nunca
ter tido tanta vontade de viver.
Dan
parece sem jeito quando se aproxima da janela para vê-los, e sorrio para que
ele se aproxime. No entanto, ele permanece numa distância segura, com a
expressão séria, observando o céu. Sua expressão não demonstra emoção, na verdade,
parecendo estar com a mente distante. E eu me entristeço por ele não conseguir
enxergar a beleza desse momento.
Infelizmente
Dan vira apenas o lado triste e desagradável da vida, sob as lentes escuras e
distorcidas da morte. Só imaginar tudo pelo qual ele já passara faz meu coração
se encolher dolorosamente em meu peito, e talvez a minha missão, se eu ainda tenho
alguma, seja fazê-lo ver e sentir a beleza.
__É
lindo, não? __Começo sem receber resposta, a qual eu não esperava, apenas
desejando interromper seus pensamentos sombrios. Os fogos de artifício já
diminuem sua freqüência, entretanto agora são os mais bonitos que voando alto atingem
o céu como um clarão se espalhando por ele e colorindo-o diversas vezes.
__Eu
vejo um lado bom em você, Manuela. __Dan começa parecendo desconfortável e
relutante em encarar meus olhos, no entanto acabo encontrando seu olhar, o qual
me é indecifrável. __Na verdade, você é a melhor pessoa que conheço. Você não
merece nada disso que está acontecendo. Eu realmente sinto muito.
Talvez
tenham sido os fogos, me contagiando com sua euforia explosiva, ou a magia do
Natal, e sua irrealidade infantil, a interferência dos meus pais, onde quer que
estejam, ou a beleza da noite, o que ainda nos espera, ou o que já vivemos, as
tantas vezes que ele me salvara, o jantar, ou suas palavras. Mas acredito que
tenha sido o seu olhar enigmático.
Entretanto,
com meus olhos mergulhados naquele olhar sombrio, vejo meu corpo, quase que
involuntariamente, se aproximar do de Dan, que permanece estático me encarando,
e minha mão subir á altura de sua nuca, trazendo seu rosto com delicadeza à
altura do meu. E então, antes que qualquer resquício de racionalidade possa me
impedir, me percebo encostando meus lábios levemente aos seus.
É como se uma explosão se iniciasse. Como a
pólvora sendo incendiada pela chama de uma simples fagulha. Num segundo meus
lábios encostam-se aos de Dan e no outro sinto seus braços rodearem minha
cintura, enquanto sua boca ávida procura a minha, beijando-a com urgência.
O
seu gosto é amargo, mas não de um jeito ruim, se tornando quase adocicado quando
alcança a parte mais profunda da minha garganta. Experimento novamente. É um
gosto diferente, e sinto que a cada vez que prová-lo, ele ficará apenas melhor,
se confundindo com o gosto natural da minha boca.
Suas
mãos percorrem meu corpo, e eu o abraço forte para que nunca se separe de mim.
O seu cheiro inebria minha mente, e sinto minha consciência se esvair, enquanto
me perco em seus carinhos. Seguro seu cabelo que escorrega por entre meus
dedos, e quando ele me senta na bancada da janela, eu deslizo minhas mãos para
dentro de sua camisa, sentindo sua pele contra a minha, e seus músculos
contraídos em tensão.
Ele
mergulha seu rosto em meus cabelos, seguros em sua mão firme, beijando minha
orelha, e meu pescoço, e eu me contorço de prazer no seu abraço, desejando que
isso nunca acabe. Sua boca procura novamente a minha, e eu a entrego sem
resistência, sentindo sua língua explorá-la. Eu o trago para mais perto de mim,
pressionando meu corpo contra o seu, como que para fundi-los num só.
Porém
eu teria caído da minha posição, se ele não tivesse me colocado em pé num
impulso, distanciando-se de mim subitamente, parecendo transtornado.
__Não.
__Diz com a voz entrecortada, e sua respiração ofegante. Seu olhar parece turvo
e num ímpeto ele pega seu casaco e a chave do carro que descansava no braço do
sofá. __Você está confundindo as coisas, Manuela.
__O
que houve, Dan?!__Exclamo resfolegante ajeitando meus cabelos e meu vestido. No
entanto, ele não deve ter ouvido, pois já desaparece entrando no carro e saindo
como um raio.
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