__O que você fez?!
__Pergunto chorosa não mais agüentando o silêncio que se instalara desde que
havíamos ganhado a estrada. Eu não sei há quanto tempo permanecemos no carro,
quanto tempo falta para chegarmos em algum lugar ou para onde estamos indo. __Você...
Você o matou!
__É o que eu faço. __Redargúi com o olhar na estrada. Ele
retira o casaco ensopado e o joga no banco traseiro do carro, revelando sua camiseta
preta que permaneceu seca apesar da chuva. Seus cabelos molhados caem sobre seu
rosto sério, gotejando em sua camisa, e eu posso ver seu rosto machucado por
algum dos galhos que haviam atingido o carro, mas me impeço de me sentir
culpada. __Eu mato pessoas.
__Mas por quê?!__Eu me esforço para que as minhas
palavras façam sentido quando nada na minha vida faz. As imagens de Carvalho
povoam minha mente, suas expressões de terror e alívio se misturando à face
fria e impassível de Dan ao matá-lo, fazendo meu coração se apertar assustado
em meu peito. __Ele era seu amigo. Ele disse a você tudo o que queria. Você.
Você o abraçou. Ele...
__Eu não tenho amigos. __Afirma secamente com o olhar
fixo à sua frente, encarando a noite fria e silenciosa. A paisagem ao nosso
redor parece embaçada quando Dan atinge a marca dos 200 km/h temendo que os
homens de Carvalho nos alcancem.
__Mesmo assim ele era uma pessoa, devia ter família,
amigos, sonhos... Meu Deus... Como você pôde matá-lo? Como você pode matar
alguém? Ele implorou. Ele não teve culpa, o ameaçaram de morte... E você. Você simplesmente
o matou.
__O que você achou? __O sarcasmo em sua voz é como um
ácido corroendo meu peito. __Que eu sou uma espécie de seu anjo da guarda? Que
eu só mato pessoas para lhe proteger? Isso não é um conto de fadas. A essa
altura, você já deveria ter percebido. Quando eu atirei nos homens que estavam
torturando você, não pareceu achar tão ruim.
__Eu não falo apenas nessa situação. Como você pode viver
disso? De matar pessoas? O que o faz melhor que elas? Você não tem o direito de
decidir quem vive e quem morre!__Grito inconformada resistindo, sem sucesso, ao
meu impulso de voltar a chorar.
__É o que eu faço de melhor. Elas morreriam de uma forma
ou de outra, a única diferença é que sou quem está com a arma, e sei usá-la
melhor. E não sou eu que decido quem vive e quem morre. Eu não mato os
mocinhos. Se alguém me paga para matar uma pessoa, ela deve ter feito alguma
coisa para merecê-lo. Os motivos não me interessam. Eu apenas faço melhor o que
um amador acabaria fazendo em meu lugar.
__Então os meus pais mereceram morrer?
__Você ouviu o que o Carvalho disse. Eles se meteram com
as pessoas erradas.
__Então eu mereço morrer também. Alguém pagou você para
fazer isso. Por que você não fez se não se importa?! __Exclamo caindo em
prantos. Eu não consigo acreditar que ele possa ser tão insensível e cruel. O
olhar de desespero do homem que acabara de morrer, e sua expressão de alívio
antes de ser alvejado se aloja em minha memória, me perturbando.
__Você não sabia de nada. Não tinha nada a ver com
aquilo.
__Como
você podia saber?! Você nem sabia por que estava matando meus pais!
__Quantas
vezes eu preciso dizer?! Eu queria salvar sua vida. E com certeza não é o que
eu faço de melhor. Durante aqueles dias que nós passamos naquela casa, eu
estava esperando apenas que seus documentos ficassem prontos, a sua passagem já
estava comprada. Ninguém saberia que você havia sobrevivido e poderia viver em
outro país, recomeçar a vida. Foi você que não acreditou em mim, e eu estou
apenas consertando os erros que você cometeu, e que acabaram me envolvendo
também. Acho que um pouco de gratidão não faria mal.
__Eu
sou grata. __Confesso resignada, observando Dan, sem entender o que sinto por
ele, tendo todos os motivos para odiá-lo, amá-lo, temê-lo e admirá-lo. __Só não
entendo como você pode querer que eu recomece a minha vida, sem dar nenhum
valor à vida de uma maneira geral.
__Você
não sabe nada sobre mim.
__Mas eu quero saber. Você entrou na minha vida e
atualmente é a parte mais importante dela. Eu me importo.
__Eu
posso fazer parte da sua vida, mas você não faz parte da minha. Eu vivo
sozinho. Sempre vivi e você não vai mudar isso. __Continua enquanto observa a
rodovia que passa como o vento abaixo de nós, e eu me pergunto por que ele
evita tanto meus olhos.
__Você
não pode viver sozinho! Nenhuma pessoa sobrevive sozinha.
__Eu
estou muito bem. E ainda estava melhor antes de você estragar tudo.
__Ótimo. Por que você não faz o que o Carvalho recomendou,
então? Você pode me matar e me entregar para eles.
__Eu nunca trabalharia para eles...
__Mas poderia me matar. Fazer o que você faz de melhor.
Se você não fizer eu posso fazer. E se for por peso na consciência, não se
martirize, você se esforçou ao máximo, eu que estraguei tudo.
__Eu não sou do tipo que faço o que os outros querem. E
você me atrapalha menos estando sob a minha vigilância.__Completa irritado.
__Jura?! __Inicio irritada, com meu ódio superando meu
temor. __Pois eu pensava que você era o cachorrinho que matava as galinhas para
impedir o dono de sujar suas mãos de sangue!
__Você não deveria ter dito isso. __Diz segurando com
firmeza o volante, como se estivesse se impedindo de fazer algo, enquanto
acelera o carro a uma velocidade espantosa que eu não sabia ser possível se
alcançar. Posso ver seus músculos tensos, contraídos, com suas veias quase
saltando do braço e seu rosto numa expressão de ódio contido.
__Eu não tenho medo de você! __Vocifero com meu corpo
todo a tremer, desesperada com as palavras loucas que minha boca insiste em
dizer. __Você é apenas um covarde, que não tem coragem de enfrentar a verdade,
e continua a viver sozinho, por medo de que alguém o ame, já que é incapaz de
amar qualquer pessoa, amar o próximo! E tem medo de admitir que é fraco! As
pessoas têm medo e é isso que as fazem humanas! Você não matou o Carvalho por
ter traído um amigo, se você nem tem amigos, nem mesmo por ter traído a sua
confiança! Você o matou porque ele teve a coragem de admitir que é fraco, é
humano, tem medo de morrer! Enquanto você brinca de matar achando que assim é
uma espécie de amigo da morte! Mas ela um dia vai pegar você! E não haverá uma
única pessoa para lamentar a sua partida!
Calei-me assustada com minhas palavras. Talvez eu realmente
queira que Dan termine logo com isso, me odeie, e me mate. Ou apenas não
consiga aceitar o que os fatos me mostram e sempre me mostraram. Que Dan,
infelizmente, é um monstro insensível.
__As pessoas se matam aos poucos todos os dias, mas
ninguém parece perceber. __Inicia parecendo calmo enquanto contempla a paisagem
à sua frente. __Eu apenas acelero o processo, talvez até com menos dor. Eu não
tenho medo da morte nem me importo se ninguém lamentar a minha partida. Cada um
exerce o papel que lhe foi dado.
__Ninguém te deu esse papel!
__A vida é uma cadeia alimentar. Todo mundo vive do
suplício de outro. O seu castelo de sal se devia ao sofrimento e mortes de
muitas pessoas. Mas nas suas lentes cor-de-rosa tudo era um sonho. Seja
bem-vinda à vida.
__Eu não sei se quero essa vida. __Murmuro percebendo que
as minhas palavras machucaram apenas a mim, e que nada que eu faça poderá
atingir Dan, não com a barreira intransponível que ele construíra ao redor de
si mesmo.
__É a única que tenho a oferecer. O seu castelo
desmoronou. Às vezes é melhor nunca ter tido um castelo.
__Como você pode saber se nunca matou um inocente? Alguém
que não merecia morrer? __Indago procurando sem sucesso algum sinal de
humanidade em seu rosto.
__Não existem inocentes nem culpados. Apenas pessoas com
precaução, que eliminam seus inimigos antes que eles façam o mesmo com eles. Eu
fiz a minha escolha. Todos são meus inimigos, e eu estou sempre um passo a
frente deles.
__Você não pode odiar todas as pessoas. Sem se importar com
suas mortes.
__Eu não odeio todas as pessoas, apenas não sinto nada
por elas, sou indiferente, não me importo.
__Mas isso não permite que você decida quem merece morrer
e quem merece viver.
__Não sou eu que decido. É quem me paga...
__Como você pode ser tão insensível?! Meu Deus! Talvez
você só tenha visto o lado mau das pessoas. Entretanto, todas elas têm seu lado
bom, só que algumas vezes não têm oportunidade de mostrá-lo. E elas merecem
viver, para terem essa chance.
__Eu, por exemplo. __Fala calmamente com o olhar
distante. __Nem a sua fantasia pode ver um lado bom em mim.
__Eu... Eu vejo todos os dias quando você me salva e
quando se preocupa comigo. __Confesso me aproximando e enfrentando seu olhar
quase surpreso que finalmente me observa. O seu rosto está tão próximo ao meu,
que com dificuldade resisto ao impulso de beijá-lo, embora não faça idéia de
onde surgiu esse desejo repentino e inconseqüente, talvez numa tentativa
inconsciente de fazê-lo sentir qualquer sentimento humano.
__Errado... __Começa parecendo se recompor, voltando o
olhar para a auto-estrada. __Esse é um
dos meus piores lados.
__Como assim?!
__Eu fui puramente egoísta, só você que não percebe. Eu
nunca precisei de ninguém na minha vida, por isso sou livre, sem dívidas. Eu
nunca devo favores, mas devia a você, estou apenas retribuindo.
__Nem todo mundo retribui favores. __Continuo não
acreditando no que ele insiste em me convencer.
__Por que você está fazendo isso? __Exclama me encarando
irritado, me espantando com sua exaltação repentina. __Esse jogo?! Não basta eu
ter matado seus pais?! Você deveria me odiar! Você acaba de comprovar a minha
teoria, de que ninguém tem um lado bom! Você mesma é tão egoísta que me perdoou
por ter matado seus pais apenas porque salvei a sua vida!
Suas palavras me atingem como uma bofetada, retirando meu
fôlego e me impedindo de me defender. Eu evito avaliar a mim mesma no espelho
retrovisor, mas me deparo com meu reflexo. Eu me admiro por fazer tanto tempo
que eu não me olhara num espelho, e mal me reconheço. Meus olhos marejados
parecem opacos, sem brilho, como os de um doente terminal à espera do descanso
eterno, assim como meus cabelos que pendem ao lado do meu rosto pálido e
abatido. Meus lábios arroxeados tremem do que parece ser frio ou talvez da
tentativa que faço de me impedir de chorar. E eu agradeço que nenhuma das
pessoas que haviam conhecido a antiga Manuela possa me ver agora. Eu não
saberia explicar onde ela se perdera.
__Eu não perdoei você. __Declaro agradecida por ele estar
me ofendendo e assim diminuindo o meu desejo de compreendê-lo, enquanto não
reprimo mais minhas lágrimas. __Nunca perdoarei. E você se engana quando diz
que nunca precisou de ninguém. Seus pais? Você não é auto-suficiente ao ponto
de ter nascido do nada.
__Mas eu retribuí o favor. __Afirma retomando sua calma
inicial.
__Como?! Se tornando um assassino?! __Ironizo com minha
voz falha.
__Não. Causando suas mortes antes que eles precisassem
saber disso.
E então eu me calo e Dan parece subitamente satisfeito.
Minha intenção é permanecer silenciosa pelo restante da
viagem. Meus olhos estão cansados e ardendo, se fechando ao meu mínimo
descuido, porém sou incapaz de dormir com minha mente processando as palavras
de Dan. Ele matara seus próprios pais, e eu não sei se sinto piedade, medo ou
repugnância. A única coisa que afirmo é que não posso ser indiferente a ele,
embora ele seja a mim.
Eu sei que ele me protegerá e me manterá viva até quando
lhe for vantajoso, e não há mais como sair do seu jogo. Posso ver seus músculos
lutando contra o cansaço, enquanto sua expressão continua séria. E só de
imaginar todas as provações pelas quais ele já passara, sinto meu coração
apertar em meu peito. O sol começa a surgir no horizonte, e seus primeiros
raios brincam no rosto de Dan que mal parece percebê-los. E me reprimo ao me
perceber o admirando.
Eu abro a janela, esperando que o vento frio da manhã
espante meus pensamentos e me pergunto há quanto tempo já estamos na estrada,
indo para mais uma cidade desconhecida. No entanto, logo me vejo contemplando
novamente a expressão de Dan segura e maliciosamente perigosa. E por mais que
minha mente me proíba, não me impeço de retomar a conversa:
__O que houve com os seus pais? __Inicio sabendo o
terreno perigoso o qual começo a percorrer. __Como eles morreram?
__Eu não falo sobre isso. __Afirma aborrecido com a
interrupção, parecendo estafado pela viagem.
__Eu prometo não fazer mais nenhuma pergunta...
__Insisto apenas desejando que não briguemos mais.
__Você já prometeu isso antes.
__Eu dou minha palavra.
__Você já jurou pela alma de seus pais. Sua palavra é
mais forte do que isso?
__Quantos anos você tinha? __Continuo ignorando sua
relutância que parece vacilar.
__Doze. __Começa aborrecido. O movimento na estrada
aumenta, carros e caminhões passam por nós em alta velocidade, o dia amanhece,
mas Dan continua a correr. __Meu pai era muito violento e agredia minha mãe. Eu
era filho único e num dia meu pai, ao chegar do trabalho, surrou minha mãe,
deixando-a desacordada. Ela fazia o jantar na cozinha, e agora jazia no chão de
piso batido. Eu não hesitei e matei meu pai com a faca da cozinha e chamei a
polícia, após fugir de casa. Soube depois que ela estava apenas desmaiada, e se
matou quando descobriu que eu fizera aquilo. Satisfeita?
Meu corpo estremece quando imagino a cena, e me abraço em
meu casaco emprestado, em busca por proteção. Observo o rosto de Dan cuja
expressão dura me fere a alma. Eu também me sinto em dívida com ele, mas sei
que nunca estarei à altura de recompensá-lo. Sinto as lágrimas rolarem pelo meu
rosto, e não tento reprimi-las. Já estou cansada de não ter sucesso nas minhas
tentativas, e então elas respeitam minha dor e descem calmas como se não
quisessem me assustar nem chamar a atenção de Dan.
Eu desvio meu rosto para longe de Dan, contemplando a
janela, na tentativa de impedi-lo de me ver chorar, lamentando sua dor,
todavia, quando a paisagem se torna cada vez mais familiar, não me reprimo de soltar
um grito assustado:
__O que estamos fazendo aqui?! Essa é a minha cidade!
__Eu sei.
__Mas eles devem estar por aqui! Não é seguro!
__Você ouviu o que o Carvalho disse? Seu pai trabalhava
para o Silas. Eu preciso saber que tipo de negócios ele tinha, e para quem ele
estava servindo de espião. Como a sua casa está destruída, eu preciso entrar no
escritório do seu pai. O Silas já deve ter limpado qualquer vestígio, mas deve
haver algum cofre. Eu quero que você me diga todas as datas e os nomes
importantes para o seu pai, e o que você se lembra do escritório dele, algum
lugar que você não podia entrar. Qualquer coisa.
___Qual a importância disso?! É muito arriscado. Todo
mundo me conhece, qualquer um pode me reconhecer.
__Alguém estava oferecendo proteção para o seu pai, eles
podem oferecer a você, em troca de informações. E nós não vamos ficar aqui.
Vamos para outra cidade, onde será mais seguro. Apenas eu virei para cá. Espero
que você não se deixe seduzir pela nostalgia e faça alguma besteira.
__Eu não vou.
__Ótimo. __E então fecha as janelas do carro, para que
ninguém possa me ver através dos vidros escurecidos, embora eu possa ver tudo,
como num sonho de uma vida passada.
É
uma situação que muitas pessoas já desejaram, poder ver seu mundo após sua
morte. E terrivelmente perturbador. As
casas ainda estão fechadas, mas alguns idosos começam a abrir suas janelas para
receber a claridade do sol. As crianças começam a se arrumar para a escola, e
algumas que moram mais distante, começam seu percurso despedindo-se das mães,
que verificam pela milésima vez se nada está faltando na mochila.
Os postes começam a se apagar, os bares da periferia da
cidade a se fechar, e as padarias abrem suas portas. Embora os vidros fechados
me impeçam de sentir o ar fresco da cidade quase provinciana na qual vivera por
toda minha vida, posso quase sentir seus cheiros, dos ipês floridos nos
quintais das casas protegidas por seus muros baixos, das folhas e da grama
úmidas pelos chuviscos da noite nas praças, parques e residências, além dos
pães mal saídos do forno e o café que começa a ser fervido.
Começo
a reconhecer os lugares da cidade, as praças na qual passeara, os parques nos
quais brincara por toda a minha infância, a danceteria da minha festa, e as
lanchonetes que eu freqüentara com meus colegas. A decoração natalina se
estende pela cidade, as árvores das casas cobertas por pisca-piscas ainda
acesos, guirlandas espalhadas pelos comércios, e a grande árvore de natal na
maior praça da cidade próxima à minha escola ainda deserta, sendo pintada para
o ano seguinte, para os novos alunos.
Talvez
seja um prazer mórbido de Dan, mas logo me percebo no meu antigo bairro de
casas luxuosas e isoladas. Eu me esforço para reconhecer algum vizinho, mas
todas as casas permanecem silenciosas nos seus muros altos. E então minha
antiga casa.
É como estar num pesadelo sem roupas, sem
proteção, sem um lar. Há apenas o seu largo terreno recém-capinado com uma
placa de vende-se, rodeado pelo muro de pedra. Eu não me importo de estar
chorando. É como chorar á beira do túmulo dos meus pais, oportunidade que eu
não tivera.
Vejo
Dan desacelerar o carro, e agradeço a ele inconscientemente. Meu coração
dispara ao reconhecer uma foto presa à parede, a mesma foto minha e dos meus
pais. Eu não consigo ler os dizeres, no entanto agradeço pelo carinho da cidade
por minha família.
É
estranho ver o lugar em que eu passara toda a minha vida destruído, apenas um
pedaço de chão. Literalmente meu castelo havia desmoronado. O palco dos meus
sonhos, das minhas alegrias e tristezas, vitórias e derrotas. O lugar para o
qual eu fugia quando estava assustada e triste após um longo dia, e para onde
eu corria saltitante contando minhas conquistas após um dia inesquecível. A
sede do amor da minha família. O símbolo de nossas vidas. O nosso lar. Meu
porto seguro extinguido.
E
então percebo, num segundo, que estou visitando minha própria sepultura. A
sepultura da antiga Manuela Ferreira Gonçalves. Ela morrera, e eu sabia que ela
nunca mais voltaria. A Manuela que acreditava que todas as pessoas eram boas, e
a felicidade era apenas existir, que os sonhos estavam à nossa espera, e que o
amor era a força que fazia o mundo girar.
Essa
Manuela morrera junto com as pessoas que mais amava, e para todas as pessoas
que a amavam. Eu liberto minhas lágrimas sem repressão, as liberto em
despedida. Eu amei aquela Manuela, eu amei ser ela. A vida tinha uma cor tão
pura, tão clara, tão maravilhosa.
Eu
choro pela última vez, pois as lágrimas não trarão a antiga Manuela de volta, e
sim a levarão para longe, para um lugar onde eu nunca mais possa encontrá-la. Eu
então me despeço, dando uma última olhada para o terreno, que já desaparece ao
longe. E quando abro a janela, para aspirar pela última vez o ar puro da minha
antiga vida, minhas lágrimas se evaporam subitamente, como se nunca tivessem
estado em meu rosto.
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