Três dias. Divididos
entre os caminhos da rodovia, tentando parecer despreocupados ao passarmos
pelos postos policiais, e entre restaurantes e hotéis à beira da estrada,
fugindo quando surgiam os noticiários e desviando de todos os olhares, mesmo os
não desconfiados.
Dan parece cansado por não ter me permitido dirigir,
receando que chamássemos atenção por outros motivos. Acaricio seu rosto e seus
cabelos, recebendo seu sorriso fatigado, o qual retribuo, encontrando seu olhar
cúmplice. Desde que me pedira, eu evitara me desculpar por estar lhe fazendo
tanto mal, e ambos parecemos mais calmos, embora eu saiba que por dentro ainda
estejamos apreensivos.
__Você está com medo? __Sussurro me aproximando dele,
quando diminui a velocidade ao entrarmos na pequena cidade em que crescera, e
acariciando seu rosto cujos ferimentos começam a cicatrizar. __De se encontrar
com seus pais? É natural ter medo... __Continuo quando ele permanece em
silêncio.
__Um pouco. __Confidencia, me envolvendo em seu abraço.
__Não é medo. É receio.
__Tem diferença? __Pergunto sorrindo, enquanto passamos
pelas ruas de paralelepípedo com suas casas quase idênticas.
__Espero que tenha. Chegamos. __Diz parando o carro em
frente a uma humilde, mas bem-cuidada casa. Eu sorrio ao vê-la, com sua cerca branca
a rodeando, e seu belo jardim com os mais diversos tipos de plantas de inúmeras
cores e tamanhos.
Eu abraço Dan quando ele me ajuda a sair do carro e
contemplo sua face ansiosa. Aperto sua mão que repousa em minha cintura, e
percebo que não está úmida, mas tensa, apertando a minha de volta, quando beija
meus cabelos num gesto de carinho.
A cidade, pelo que eu pudera ver no caminho, é simples e
campestre, com modestas, mas largas moradias, com parques florestados e praças
movimentadas pelas crianças, devendo não ter mais que dez mil habitantes. A
casa da família de Dan se situa numa das principais e aparentemente
tradicionais ruas, ainda de chão de pedras, assim como o caminho que leva a
casa, em meio ao jardim, a partir do portão de madeira.
Ainda me envolvendo em seu abraço, me permitindo sentir
as batidas aceleradas do seu coração, Dan abre sem dificuldade o portão me
conduzindo pela passarela, até a porta entreaberta. Ele bate palmas duas vezes,
fazendo com que passos apressados venham em nossa direção.
A cena que se segue é rápida e eu a contemplo
estarrecida. Uma humilde senhora, bonita com seus cabelos e olhos muito
escuros, aparentando seus quarenta e cinco anos, embora seu rosto transpareça a
fadiga de muitos anos de trabalhos domésticos, surge à porta. Ela nos olha
curiosa, com seus olhos argutos que me lembram os de outra pessoa, secando suas
mãos roliças num pano de prato. Seus olhos encontram os de Dan, e eu o sinto se
enrijecer subitamente, com seu braço mais apertado contra minha cintura.
Os olhos da senhora se tornam marejados e a vejo aflita
começar a chorar, com seu corpo trêmulo se agitando de emoção, gritando e
roubando Dan do meu abraço.
__Henrique, meu filho! Henrique... Henrique... Por que
você me deixou? __Grita contemplando e acariciando o rosto de Dan, no mínimo
trinta centímetros mais alto, embora ele esteja inclinado sobre a senhora
recebendo timidamente seus beijos.
Eu sorrio emocionada, não me impedindo de chorar, admirando
a visão de Dan embaraçado com as demonstrações amorosas descomedidas da mãe, a
envolvendo em seu abraço desajeitado, com os olhos marejados de lágrimas que
contém com esforço.
__Meu filho, como você pôde fazer isso comigo? Eu quase
morri quando você desapareceu! Eu o amo tanto. Como você pôde fazer isso com
sua mãe? __Pergunta entre lágrimas, ainda abraçando e puxando o rosto do filho
para perto de seus beijos afetuosos. Eu a vejo segurar o rosto de Dan próximo
ao seu com suas mãos vacilantes, acariciando seus cabelos e o admirando maravilhada.
Seus olhos úmidos avermelhados pelas lágrimas brilham extasiados com a imagem
de seu amado filho, como se quisessem retê-la antes que se dissipasse como
mágica.
__Calma, mãe. __Ouço Dan dizer com a voz embargada, os
olhos reluzentes ao contemplar sua mãe, enquanto tenta se desvencilhar
acanhadamente do seu abraço. __Sou eu, Henrique. Eu nunca quis magoar a
senhora.
__Por que você me deixou? Foram aqueles seus amigos
delinqüentes, não foram?
__Mãe. __Começa Dan, encarando sério o olhar materno.
__Eu quis ir embora. Eu já tinha dito a senhora inúmeras vezes que esse não era
o meu lugar. Eu queria descobrir o mundo.
__Mas você era uma criança! Só tinha doze anos! Nem tinha
terminado seus estudos! O seu pai me culpou tanto, dizendo que eu o havia
mimado demais. Mas eu só lhe dei amor.
__Mãe, não vamos discutir isso agora... __Diz, olhando
timidamente para mim num pedido de desculpas, se dando conta da minha presença.
__O pai está aí?
__Está trabalhando. Você vai ficar muito tempo? Quem é
ela? __Pergunta olhando para mim de uma forma simpática, embora eu estremeça ao
sentir que assim como Dan ela é capaz de ler minha alma com apenas um olhar,
avaliando-me dos pés à cabeça.
__É a minha noiva, Manuela.
__Noiva?! __A senhora exclama antes que eu faça o mesmo.
__Vocês vão se casar?!
__Ainda estamos planejando. __Ouço Dan dizer dando-me um olhar
cúmplice na tentativa de me acalmar dizendo que me explicará tudo depois, indo
ao carro pegar nossas malas.__Podemos entrar? Vamos passar apenas alguns dias.
Nós ficamos no mesmo quarto.
__Mas você é muito novinha, Manuela. Eu sou Adelaide,
caso o Henrique não tenha falado. __Sorri me dando um abraço apertado. __Você
tem um jeito de menina rica... Não repare na bagunça, e a casa é muito simples.
O Henrique poderia ter avisado que você viria, mas eu não o vejo há dez anos.
Como um filho pode fazer isso com uma mãe? Duvido que você trate seus pais
assim.
__Eles estão mortos. __Murmuro num sorriso triste.
__Oh! Eu sinto muito, minha filha. __Lamenta me
abraçando e beijando meu rosto carinhosamente. __Tão novinha e já órfã.
__Está bem, mãe. __Ouço Dan pedir quando retorna com
nossas malas. __ Você está assustando a Manuela. Ela está muito cansada da
viagem. Vamos. __Sussurra para mim, me dando um rápido beijo antes de entrarmos
na casa.
Assim como por fora a casa é simples e aconchegante por
dentro, com uma larga sala, mobiliada com um conjunto de sofá coberto por uma
colcha de retalhos, rodeando uma mesa de centro sobre um tapete colorido e uma
televisão numa estante de livros. Eu sigo Dan que se dirige ao corredor que dá
para a cozinha, fazendo Adelaide se desculpar pela pilha de louça ainda na pia
voltando para terminá-la, e para dois quartos, num dos quais o vejo entrar.
É o mesmo quarto que ele deixara há dez anos, ainda com a
colcha do super-homem e pôsteres de super-heróis na parede. Há uma escrivaninha
e um guarda-roupa numa madeira já envelhecida, e prateleiras repletas de
bonecos e modelos de carros, motos e aviões. Ele descansa as malas no chão,
sorrindo para mim envergonhado.
__Isso é constrangedor.
__Dan, é um quarto como o de qualquer outro garoto de
doze anos.
__E eu me pergunto por que apenas eu me tornei o que sou.
__Lamenta sentando-se na cama abatido.
__Dan... Quer dizer, Henrique...__Inicio sentando-me ao
seu lado e segurando seu rosto próximo ao meu. __Poderia ter acontecido a qualquer
um, mas você pode mudar isso.
__Eu não posso, Manuela. Você ouviu o Silas. Nessa vida,
não há volta. Você viu o que aconteceu... __Pára antes de terminar a frase.
__Com meus pais. Não precisa acontecer o mesmo com você.
Eu não vou permitir que aconteça. Vamos viver um dia de cada vez. Talvez
voltando para cá, para suas raízes, você descubra onde se perdeu.
__Desculpa, não quis interromper. __Diz Adelaide,
sorrindo embaraçada ao surpreender nosso beijo.
__Não, tudo bem, senhora Adelaide.
__Pode me chamar só de Adelaide, filha. Eu vou
providenciar o almoço.
__Quer ajuda? __Ofereço ignorando o olhar de censura de
Dan.
__Não, filha. Melhor vocês descansarem. O seu pai só
chega lá para as seis horas da noite, quando acaba o turno dele na fábrica.
__Certo, mãe. Eu queria roupas de cama novas e toalhas.
Ou eu posso comprar no centro.
__Não, Henrique. Eu já pego para vocês. Eu mantive o
quarto do mesmo jeito de quando você foi embora. Eu sabia que você voltaria um
dia, só tinha medo de não estar viva quando esse dia chegasse.
__Mãe, não fica assim. __Pede Dan abraçando a mãe que
começa a chorar.
__Desculpa. O que a sua noiva vai pensar de mim? Que eu
sou uma velha chorona. __Sorri me olhando envergonhada.
__Você não é velha! Nem chorona! __Brinco, me levantando
e sorrindo ao fazê-la sorrir gratificada ao se despedir. Eu ainda insisto
pedindo para que fique conosco, com Dan, no entanto ela argumenta que a casa
está uma bagunça, e que aproveitará nossa visita depois, uma vez que espera que
demoremos. Dan me pede que desista, quando a vejo ir em direção à cozinha,
dizendo que ela ainda não assimilara o seu retorno.
__E essa história de noiva? __Pergunto quando o vejo fechar
a porta, sem querer parecer ansiosa ou pretensiosa.
__Desculpa. É porque só há apenas um quarto, que nem é de
hóspedes na verdade. Minha mãe não permitiria que ficássemos juntos se fôssemos
apenas namorados ou o que quer que nós sejamos. Espero que você não se incomode
com a cama de solteiro. Ela nem é muito confortável. Eu posso dormir no chão se
você quiser.
__Não. Eu não durmo sem você abraçado a mim. Estou mal
acostumada. Embora eu nem ao menos saiba definir o que somos um do outro.
__Acho que nós somos praticamente marido e mulher,
casados pelo destino. __Confessa sorrindo tímido.
__Eu aceito. __Sussurro beijando seus lábios.
__Eu também aceito. __Declara trancando a porta do
quarto, e me carregando nos braços até a cama, enquanto eu tento conter minhas
risadas para que sua mãe não nos ouça. __E eu os declaro marido e mulher. Pode beijar
a noiva. __E então ele me beija.
Quando saímos do quarto, algumas horas depois, a mãe de
Dan ainda parece emocionada, ao nos servir dois pratos de comida, a qual parece
realmente deliciosa. Sentada ao lado de Dan, à mesa da cozinha, me alimento com
avidez, uma vez que não havíamos parado nem mesmo para o café da manhã.
Saboreando mais uma porção, encontro o olhar cúmplice de
Adelaide acompanhado de um sorriso maroto. E antes que eu possa entendê-los, a
vejo se sentar radiante ao lado de Dan, segurando sua mão e a levando até os
lábios para beijá-la.
__Henrique, meu filho. Agora eu entendo porque você veio
nos visitar depois de tanto tempo e porque pretende se casar com a Manuela,
embora vocês ainda sejam tão jovens. Eu não acredito que você não me disse
logo, esperando que eu adivinhasse! Ela está grávida!
__Não! __Exclamo juntamente com Dan. __Não.
__Realmente não está nos nossos planos no momento. __Ouço
Dan dizer, me enviando um olhar de dúvida que é recebido pela minha perplexidade.
__Ah. Realmente. Ela está muito magrinha para estar
grávida. __Observa tristemente, levantando-se e trazendo uma jarra de suco para
nos servir. __Heitor! __Grita chorando e se dirigindo à sala, enquanto Dan se
levanta num ímpeto, deixando seus talheres caírem sobre a mesa de vidro. __Veja
quem chegou. O Henrique voltou. Voltou!
Eu também me levanto, acariciando a mão de Dan que
permanece rígida sobre a mesa. Ele me olha inquieto, desviando seu olhar quando
um homem de meia-idade, parecendo jovem para a idade, com os cabelos escuros
que começam a se perder em meio aos cinzentos, um pouco mais baixo que Dan, mas
que o encara com altivez, entra na cozinha, ainda em seu uniforme de trabalho.
__O que você está fazendo aqui?! __Pergunta enfurecido,
enfrentando Dan, cuja tensão aumenta. __Como você pode voltar depois de tantos
anos, como se nada tivesse acontecido?
__Eu vim ver a mãe e apresentar minha noiva. Mas posso ir
embora se minha presença é um incômodo.
__Noiva?! __E então encontro seu olhar frio, que me
lembra o olhar de Dan quando irritado. __Você faz idéia de com quem está
pensando em se casar, garota?
__Eu amo o seu filho. __Ouço-me gaguejar encontrando o
olhar perturbado de Dan, que parece grato pelas minhas palavras, e se dirige ao
quarto para pegar nossas malas.
__Henrique, você não vai embora. __Declara Adelaide,
segurando o filho que pára ao ouvi-la. __Heitor, ele é meu filho e essa casa
também é minha. Ele fica. E você também, Manuela.
__Obrigada. __Murmuro em agradecimento.
__Você não sabe o quanto sua mãe sofreu e se lamentou por
todos esses anos. Todo seu aniversário e aniversário da sua partida era a mesma
choradeira. É claro que ela lhe perdoaria. Não espere o mesmo de mim.
__Eu não espero nada de você. __Dan responde o encarando
com a mesma frieza. __Talvez eu não devesse ter voltado.
__Pela primeira vez na vida você está certo.
__Parem de brigar os dois. __Exclama Adelaide,
sentando-se próxima a mim, com os nervos à flor da pele, e as lágrimas brotando
de seus olhos. __Meu Deus! Eu amo tanto os dois, sempre foram tão parecidos,
por isso que sempre houve tantas brigas. Dessa vez eu não vou permitir que isso
se repita. O Henrique e a Manuela vão passar alguns dias, mas podem passar o
tempo que quiserem. E vocês dois se esforçarão para não brigarem. Por mim. É só
o que eu peço. Sempre fiz tudo pelos dois, agora façam alguma coisa por mim.
__Tudo bem, mãe. Eu não me importo de ir embora. Nós
podemos ficar em alguma pensão, e eu virei visitá-la.
__Não! Essa casa também é sua! Você é meu filho! Aqui é o
seu lugar! Heitor, isso é o que eu tenho pedido por todos esses anos, e você
não irá impedir que ele se realize.
__Tudo bem, Deli. __Heitor declara resignado, engolindo
seu orgulho, assim como Dan. __Você não merece sofrer mais do que já sofreu por
todos esses anos graças à ingratidão desse seu filho.
__Heitor, você prometeu!
__Não precisa, mãe. __Dan insiste abatido.
__Henrique, você
ficará aqui! Nós somos uma família novamente, ainda maior, não tire isso de
mim.
__Tudo bem, mãe, onde eu posso pegar a roupa de cama e eu
agradeceria se nós pudéssemos tomar banho.
__Estão no varal, meu filho.
__Eu vou tomar banho antes. __Heitor diz indo ao banheiro.
__ Sou eu que sustento essa casa, acho que tenho prioridade. E não tenho
direito nem a comprar um carro novo como outras pessoas.
Eu sorrio aceitando a cadeira que Adelaide me oferece
quando ficamos a sós.
__Sempre foi assim, mas eu sei que no fundo eles se amam
muito. Só são igualmente teimosos e orgulhosos. Sempre essas brigas infantis. Doze
anos. E eu não me importaria se tivesse sido por mais dez, se Henrique não
tivesse nos deixado. Oh, Manuela, obrigada.
__Por quê, Adelaide? Eu só tenho o que agradecer a
senhora.
__Manuela, eu sei que se o Henrique só voltou agora, você
tem alguma coisa a ver com isso. Eu vejo o modo como ele olha para você. E fico
feliz por você olhá-lo da mesma forma. Tão apaixonados. E eu posso ver o bem
que você está fazendo a ele. __Sorri, segurando minhas mãos entre as suas e
sussurrando para que ninguém mais a ouça. __Quando o Henrique foi embora, ele
estava metido em más amizades, e eu tive tanto medo por ele. Do que ele poderia
ter se tornado. Se envolver no mundo do crime. Mas graças a Deus isso não
aconteceu. Se tivesse acontecido ele não estaria com uma moça de bem como você.
Eu estou tão orgulhosa e feliz. E sinceramente espero do fundo do meu coração
que vocês sejam muito felizes.
__Eu também espero, Adelaide. E espero que a senhora e
seu marido também sejam.
__Eu falo por mim, Manuela. Eu nunca estive tão feliz em
toda a minha vida. Com toda minha família reunida. A volta do Henrique é tudo o
que eu tenho pedido por todos esses dez anos, em todos os meus aniversários, em
todas as missas, todos os natais. Eu tinha tanto medo de que ele tivesse
morrido ou que nunca mais voltasse. Mas ele voltou e é só isso o que importa.
Muito obrigada.
__Obrigada você.
__O que vocês tanto conversam? __Indaga Dan sorrindo
desconfiado ao entrar na cozinha com uma pilha de roupas. Eu o ajudo e o beijo,
sob as risadas alegres de Adelaide, com a sua felicidade contagiante, que eu
espero sinceramente que nunca acabe.
Muito boa leitura !!!
ResponderExcluirObrigada Matheus! Que bom que gostou. Volte sempre.
ResponderExcluirDe nada tenho aguardado ansioso a continuação.
ExcluirNovo Capítulo já postado Matheus...Espero que tenha gostado...=D
ResponderExcluirGostei de ambos, 25 e 26.
ResponderExcluirObrigada! =D
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