terça-feira, 18 de setembro de 2012

Capítulo 16 - Fel


Encaro o teto do quarto sem saber se acabo de acordar ou se realmente tudo acontecera. No entanto, ainda posso sentir o cheiro de Dan em meu corpo, seu toque e meus lábios ainda lembram seus beijos.

            Abraço-me ao travesseiro, perdida na escuridão do quarto. As imagens e as sensações que haviam me invadido nessa noite inesquecível me invadem para meu suplício. Não me recordo de ter sentido isso antes. Nem mesmo por Marcelo. Nem mesmo acreditava ser capaz de sentir algo semelhante.

            O que acontecera? Num segundo eu me encantava com os fogos de artifício e no outro estava nos braços de Dan. Eu não sei o que teria acontecido se ele não tivesse me afastado. Eu não me responsabilizava por mim mesma. Nos braços de Dan, minha consciência se esvaíra e eu apenas conseguira me concentrar no que ele me fez sentir.

            E fora maravilhoso. Indescritível. Mas ele fugira. Por quê? Eu me entregara de corpo e alma, eu me oferecera, e Dan me rejeitara. Nunca poderia imaginar que eu ainda sentiria tamanha dor. Agora parece me faltar um pedaço, o único que realmente valia a pena. Sinto-me vazia, desamparada, mas incapaz de chorar, o que só aumenta minha dor, pois não posso libertá-la. Quando mais preciso da antiga Manuela, ela me abandona.

            Eu sou incapaz de entender o que se passou, tudo acontecera tão rápido, como uma queimadura com um ferro em brasas. Dan havia apenas me tocado por alguns segundos, mas agora eu sentia seu nome escrito em rastros de fogo na minha pele e nas minhas entranhas.

Apenas queria que ele estivesse comigo, quero sentir novamente o que ele me fez sentir. Eu não sei se o amo. O amor é uma palavra muito forte, e talvez eu já a tenha usado imprudentemente, mesmo assim, isso parece ser o mais perto do que cheguei desse sentimento.

            Não sei há quanto tempo estou aqui solitária, fazendo perguntas sem respostas. Por que ele me rejeitara? Talvez ele não sinta o mesmo. Então o que eu vira no seu olhar? Não parecia desprezo, ou indiferença. E ele me beijara. Não apenas uma vez. Ainda posso sentir cada contorno do seu corpo e a maciez segura dos seus lábios na minha pele. Talvez qualquer homem fizesse o mesmo nessa situação, uma vez que fui eu que comecei. Contudo, mesmo com a dor pela rejeição, na qual eu me impeço de acreditar totalmente, não me arrependo. Essa fora a melhor noite da minha vida, e ao contrário de querer nunca ter permitido que esse sentimento insano crescesse em mim, apenas queria que ele sentisse o mesmo, ou que pelo menos me aceitasse.

            Mas se não consigo nem entender meus próprios sentimentos, como poderei entender os dele? Eu nunca poderei encará-lo novamente se realmente me rejeitou, insisto buscando explicações que não essa para Dan ter fugido. Talvez tivesse sido melhor ter me controlado. Nem mesmo sei o que se passou na minha cabeça para beijá-lo. Eu apenas encontrei seus olhos, e por um segundo pareceu haver algum sentimento por mim, atração, paixão, ou amor, mas não indiferença.

            E por que eu inventara de fazer esse jantar, me arrumar, comprar um vestido novo? Talvez essa tenha sido minha intenção desde o início. E agora deveria arcar com as conseqüências. Meu coração se aperta quando imagino que ele nunca mais voltará, pensando que sou louca, alguma garota fútil, ou pior, uma promíscua. Talvez imagine que eu faria isso com qualquer um, e me é terrível imaginar que nunca poderei dizer a ele que é o único. O único que despertara esse sentimento descomedido em mim, que agora parece ter sempre existido, desde o meu aniversário, porém só agora percebo.

            Nem mesmo fui capaz de trocar a roupa e tirar a maquiagem. Talvez seja a esperança, minha única companheira na minha solidão, que me impede de desistir, esperando que Dan retorne arrependido e possamos retornar de onde havíamos parado.  Apenas as sandálias descansam ao lado da cama.

A luz da lua entra pela janela, formando diferentes imagens no meu corpo, as quais observo numa tentativa de conter a angústia da espera. O silêncio da casa me aflige. E meu coração dispara quando ele é interrompido pelo som do carro de Dan.

            Não me impeço de saltar da cama, sem me importar com as sandálias. Ele voltou. Sorrio, cantando vitória contra minha consciência que quase me convencera de que ele não retornaria, agradecendo à minha esperança que mesmo abalada não me abandonara. Talvez Dan estivesse apenas confuso, nós conversaremos, e tudo voltará a ser como antes, talvez ainda melhor. Verifico meu aspecto no espelho, e agradeço por não ter chorado, assim minha maquiagem está intacta.

            Tentando controlar meus tremores de excitação e ansiedade, dirijo-me à porta do quarto quando ouço Dan abrir a porta da casa. Esforço-me para mostrar meu melhor sorriso, enquanto abro a porta, ou talvez deva parecer indiferente, afinal ele fugira, ou ainda aborrecida. Mas antes que eu possa decidir qual expressão mostrar, acabo escolhendo pela de dor, muito maior do que a sentida quando fui torturada, e quase tão grande quanto a que sentira ao saber da morte dos meus pais.

            Dan atravessa cabisbaixo o corredor. Ele não encara meus olhos, e posso perceber que não está bêbado, embora traga uma garrafa quase vazia de uísque numa das mãos. Eu não posso acreditar no que vejo. Meu coração se aperta tanto em meu peito, que mal posso senti-lo quando se parte em minúsculos pedaços. E como o copo de vidro no qual eu pisara, podia sentir seus cacos perfurarem minha carne.

 Ainda trêmula, segurando-me à porta que me serve de apoio, me esforço para não chorar, impedindo que a antiga Manuela se mostre, embora ela grite em desespero no meu interior. Eu desvio meu olhar enojada, no entanto acabo encontrando o da mulher que está abraçada a ele.

Ela tem os cabelos loiros tingidos e curtos, e sua maquiagem pesada está um pouco borrada, principalmente nos lábios. Dan a segura pela cintura descoberta, uma vez que ela veste apenas uma blusa curta, e uma saia ainda menor, com bota de cano alto.

O seu ar vulgar não é pior que a face impassível de Dan. Ele nem ao menos percebe minha presença, embora eu permaneça estupefata me apoiando na maçaneta da porta, olhando-os com horror. Eu não entendo o que está acontecendo, pareço estar num pesadelo, entretanto sei que estou desperta, pois a dor que me atinge é tão forte que não me permitiria dormir. Ela está agarrada ao seu pescoço, segurando outra garrafa quase vazia, parecendo realmente alcoolizada, com um sorriso estranho nos lábios enquanto me encara.

__Temos companhia, querido. __Ela diz sorrindo, se apertando no abraço de Dan.__Eu não me importo, e ela é linda.

Eu estremeço diante da proposta implícita no seu sorriso malicioso. Controlo minhas náuseas que já haviam surgido desde que os vira, e não sei por quanto tempo a porta ainda agüentará meu peso, antes que eu caia ao chão. O olhar frio de Dan se dirige ao meu rosto, e por mais que eu tente desviar, não consigo impedi-lo de me encarar.

Eu espero encontrar algum resquício do que eu vira mais cedo, ou pelo menos algum sinal de humanidade, mas seu olhar é repreensivo e quase de desprezo, e as lágrimas ficam mais difíceis de serem controladas. Não posso chorar! Exclamo para mim mesma. Não vou deixá-lo ver o quanto está me matando por dentro. Tento encará-lo com ódio, mas imagino que apenas minha dor transparece.

__Ela está fora disso. Somos só nós dois. __Responde voltando o olhar para ela, a qual me encara novamente com um olhar cúmplice, enquanto Dan a encaminha para seu quarto.

E antes que Dan a deixe entrar na sua frente, a ouço sussurrar para mim ainda sorrindo:

__Desculpa, mas ele é bom demais para eu não terminar o que a gente começou.

E então ele fecha a porta sem olhar para trás, deixando-me sozinha no meu desespero.

Eu corro para a cama, me escondendo embaixo dos lençóis, com a cabeça debaixo do travesseiro, pedindo que minha consciência apenas me deixe em paz. A antiga Manuela vence minhas defesas, e me vejo chorar, soluçando como uma criança, lamentando minha dor, a qual apenas aumenta. Os meus gritos morrem antes mesmo de alcançarem meus lábios, enquanto meu coração bate descompensado contra meu peito, e eu me surpreendo por ele ainda demonstrar alguma reação.

E eu lamento por ter me enganado, achando que aprendera alguma coisa com a minha dor. Percebo que continuo a mesma criança ingênua e sonhadora que se deixou encantar e iludir pelo mistério que ronda Dan, e que acredita no melhor das pessoas. Eu entreguei meu coração ao assassino dos meus pais. E agora que ele o rejeita, ao invés de agradecê-lo por me despertar da minha fantasia, sofro por não vê-la realizada.

Meu coração readquire seu ritmo normal, quase sem mais forças para se contrair quando a vida parece sem sentido, e as lágrimas se tornam esparsas. Abraço-me ao travesseiro, mas logo percebo que não deveria ter feito isso, pois sem tê-lo me protegendo os ouvidos, escuto os sons do quarto ao lado e eles não são os mais agradáveis.

Realmente, se essa é sua intenção, Dan conseguiu provar que é a pior pessoa que conheço, e não entendo como acreditei ter visto algum lado bom nele, e como posso amá-lo. Sim, os sentimentos que não me pareciam claros agora são quase gritantes para mim.

Eu o amo. Se não o amasse, se ele não ocupasse a maior parte do meu coração, a dor não seria tão grande agora. Ele fizera isso para me atingir. E mesmo com toda a sua crueldade não pode nem imaginar o quanto conseguira. Eu mal consigo respirar sob as cobertas, apertando o travesseiro contra meu rosto, embora ainda consiga ouvir a voz da mulher.

A dor não é o mais inteligente dos sentimentos, e eu nunca tomara boas decisões sob seu efeito. Mas quem se importa? Nada que ela me traga será pior do que isso. E então, num ímpeto, me levanto da cama, ainda em prantos.

É uma decisão egoísta, eu provavelmente me arrependerei dela depois. Mas quem se importa?! Eu não me importo. Não agora. Até mesmo minha consciência parece entorpecida pela dor, e mesmo que ela estivesse desperta eu não a ouviria.

No espelho do banheiro, me deparo com meu reflexo assustado, com o qual começo a me acostumar. Odiando a mim mesma por permitir que Dan ainda tenha o mesmo efeito em mim que causara na minha festa de aniversário, lavo meu rosto manchado pela maquiagem misturada às lagrimas, e ajeito meu cabelo. Procuro uma roupa mais quente, arrependendo-me de tudo o que eu fizera. Eu fora ridícula, fazendo um jantar, me arrumando para uma pessoa que só merecia meu ódio e desprezo.

Já passam das três horas da manhã, quando vou à cozinha e pego o pouco do dinheiro que restara após pagar o táxi. Na sala, encontro a porta sem estar trancada e a atravesso decidida, me proibindo de olhar para trás.

Vestindo uma camiseta, minha calça jeans e um casaco, enfrento a noite fria que se estende à minha frente, percorrendo as ruas da cidade com meus passos cansados. Alguns carros passam por mim, e me aperto em meu casaco, evitando olhares curiosos. Não há um único táxi que possa me levar ao centro, mas a caminhada me parece uma opção melhor para organizar meus confusos pensamentos, e o que eu pretendo fazer pode ser feito em qualquer lugar.

 A noite está movimentada, as pessoas não se incomodam comigo, nem se surpreendem ao ver uma garota andar sozinha pelas ruas no meio da madrugada, então nem preciso me impedir de chorar, tendo minhas lágrimas logo dispersas pelo vento frio.

Entro num bar escuro e abafado, onde entrego parte do dinheiro, pedindo um cartão telefônico. Há homens e mulheres se divertindo, bebendo e dançando e imagino que Dan possa ter encontrado sua companheira aqui. Eu quase me identifico com eles, pessoas solitárias comemorando o Natal sozinhas e tentando encontrar uma companhia antes que a noite acabe.

Protejo-me no telefone público. O vento gélido bagunça meus cabelos, e trêmula digito os números que já sei decorados. O telefone toca algumas vezes, e cruzo os dedos para que alguém atenda. Meu pedido é atendido quando ouço uma voz meio sonolenta e confusa ao telefone, fazendo a calma me envolver, enquanto sem sucesso me impeço de chorar.

 __Alô. Quem fala?! __Ouço Marcelo perguntar quando permaneço em silêncio, sabendo que qualquer coisa que eu diga será ininteligível por entre as lágrimas.

­­__Sou...eu...__Choramingo mais calma, graças ao efeito quase imediato de sua voz.

__Quem? __Insiste, parecendo quase assustado.

__Sou...eu...Manuela.

Um silêncio aterrorizante persiste do outro lado da linha e eu imploro a Deus que não permita que ele desligue.

__Isso é uma brincadeira?__Sua voz está vacilante e posso ouvir sua respiração ansiosa. __Eu não acho engraçado.

__Você precisa acreditar em mim, Marcelo... __Exclamo tentando conter minha aflição, para não assustá-lo ainda mais.__É uma história louca, mas eu preciso de você.

__Você é doente! O que você quer com essa brincadeira de mau gosto?! Eu vou descobrir quem é você e isso não vai ficar assim! __Vocifera exaltado, embora eu perceba sua voz embargada.

__Eu me arrependo tanto de não termos ido para aquele quarto na noite da nossa formatura. __Digo desesperada para que ele acredite, embora minhas frases sejam soltas, e não façam sentido. __Nós iríamos ter nossa primeira noite na nossa festa de domingo que nunca houve, embora você tenha me dito que seria na segunda-feira, e que nunca nos esqueceríamos dela. Na noite de formatura, você me deu um anel de compromisso, dizendo que apesar de outros caminhos estarem nos sendo apresentados queria que eles continuassem entrelaçados.

__E eu estou com ele guardado junto com o meu. Eu peguei de volta do dedo da Manu, pouco antes do enterro dela, para sempre me lembrar dela. Você está brincando com um assunto muito sério. Eu vou desligar.

__Não, Marcelo. Sou eu. A sua Manuela. __Choramingo, quase desistindo ao ouvi-lo incrédulo.__Eu amo você. Como eu saberia dessas coisas?! Faça-me alguma pergunta. Qualquer pergunta.

__Eu não vou fazer nenhuma pergunta. Você vai saber as respostas. Eu aposto que é uma piada do Alexandre ou da Martha. Fala para eles que estão de parabéns, até mesmo a voz é idêntica. Mas não se faz uma piada com esse tipo de coisa.

__Não é uma piada! __Insisto chorosa. __Você pelo menos viu o meu corpo? Não era eu!

__É claro que eu vi. E pare de falar na primeira pessoa, como se você fosse a Manu. Pelo menos tenha respeito pelos mortos. E o corpo dela estava desfigurado, eu nem ao menos pude reconhecê-la, exceto pelo anel. __Continua com a voz emocionada. __Eu a amava, e ainda não a esqueci, e acredito que nunca esquecerei. Ainda não cicatrizou, e não sei se um dia eu poderei rir de uma piada como essa. Tenha uma boa noite.

Eu afasto o telefone. E percebo que não tenho esse direito. Ele ainda está sofrendo, e não quero fazer com ele o mesmo que Hugo fizera comigo, reabrindo minha ferida que começava a cicatrizar. O arrependimento me invade, e eu não sei quantas vezes mais tomarei medidas precipitadas e infantis, acreditando estar fazendo o certo, porém sem me importar com os sentimentos alheios. Mas não posso desligá-lo.

Colocando-o de volta ao meu ouvido, percebo que Marcelo também não desligara, e ouço sua respiração ansiosa do outro lado.

__Marcelo?

__Oi.

__Eu não tenho o direito de fazer isso com você. É melhor você esquecer essa conversa. Eu não quero machucá-lo, reabrir essa ferida que eu mesma causei. Eu não deveria ter ligado, voltado a interferir na sua vida, quando você começava a me esquecer. Nós tivemos ótimos momentos, momentos inesquecíveis, mas isso agora faz parte de um tempo que não voltará. De uma Manuela que nunca existirá novamente. Você está certo. A Manu está morta.

__Eu nunca me esqueceria de você. __Marcelo diz com a voz entrecortada, parecendo emocionado.

__Ah, Marcelo...__Choramingo com a voz embargada, como se visse as primeiras luzes do sol após uma longa e turva noite, invadida por uma felicidade que me aquece o coração ferido. __Obrigada por acreditar. Eu estou sendo tão egoísta trazendo você para esse pesadelo no qual vivo desde que nos separamos naquela quinta-feira. Eu quero tanto você aqui comigo, mas não tenho certeza se é seguro nós nos encontramos. Eu falava sério quando disse que não quero machucá-lo.

__Manu... É claro que temos que nos encontrar. Mesmo que eu não acreditasse nessa ligação, mesmo que fosse uma brincadeira, eu nunca perderia a mínima oportunidade de encontrar você. Eu não perderei você novamente. Eu amo você. Onde você está?

__Marcelo, você não imagina como é bom ouvir isso. __Agradeço com meu coração esboçando um sorriso, embora ainda esteja machucado. __Mas não é seguro. Não quero envolvê-lo nisso. É um pesadelo horrível.

__Eu não me importo. Eu quero estar onde quer que você esteja. Eu quero você. __Afirma parecendo mais seguro e quase animado.

__Meus pais não morreram num acidente, Marcelo. Eles foram assassinados. E agora há pessoas tentando me matar também. __Confesso imaginando se eu acreditaria se estivesse em seu lugar.

__Você tem certeza, Manu?!  Quem poderia matar seus pais? E quem poderia querer a sua morte?

__É complicado, mas não posso falar sobre isso por telefone.

E então me despeço marcando um encontro com Marcelo numa lanchonete próxima à praça da cidade. Eu duvido que Dan me procure após o que aconteceu, e não sei no que Marcelo pode me ajudar. No entanto, eu nunca precisara tanto do seu amor como agora. Distanciando-me, com um sorriso nos lábios, do telefone público, me dirijo ao centro da cidade, onde Marcelo me encontrará daqui a quatro horas. E como mágica, sinto os pedaços do meu coração começarem a se juntar novamente, embora ainda possa sentir o fel da dor escorrer pela minha boca.

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