segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Capítulo 10 - Conserto


Eu estou de volta à minha cama, de onde nunca deveria ter saído. Começo a me acostumar com essa situação. Acordando e tudo parecendo um sonho distante. Um terrível pesadelo. Estou sozinha, e a luz da noite que entra pela janela, com as persianas abertas, ilumina o quarto.

Minha posição está desconfortável, mas não posso me mover, pois novamente estou com a agulha do soro presa ao meu braço. Ele corre numa velocidade maior do que antes, e me surpreendo por ainda ter algum sangue. Não sou só eu que estou surpresa. A enfermeira Sarah que entra pela porta do meu quarto sorrindo, enquanto traz os medicamentos em diferentes seringas numa bandeja metálica, me congratula, dizendo que surpreendentemente estou melhor.

Ela perfura o recipiente do soro com as diferentes seringas, injetando seus conteúdos multicoloridos. Sinto-a acariciar minha testa, e percebo que não é apenas com o objetivo de avaliar minha temperatura.

É bom ter alguém para cuidar de mim. Eu seguro sua mão, e a viro, beijando-a e dizendo obrigada. Ela sorri com os olhos marejados, e beija minha testa, sussurrando em meu ouvido:

__Não é a mim que você deve agradecer.

__Eu sei. __Respondo, contendo, sem sucesso, meu pranto.  E eu não estou mentindo.

Sarah se afasta e me recomenda que eu durma, quando fecha a porta. No entanto, nem que eu quisesse, conseguiria.

Fecho os olhos, e ainda posso ver o olhar glacial de Dan ao entrar na sala. Eu tremia em prantos, quando ele se aproximou para me levantar. Desviei o olhar, envergonhada, sem palavras. Eu não merecia que mais uma vez ele me salvasse depois de tudo. E eu me odiava por sempre acabar precisando ser salva. Por mais que eu pensasse estar fazendo o certo, sempre fazia o errado, e Dan precisava surgir, me salvar e consertar tudo.

Escondi-me entre meus cabelos, que cobriam o meu rosto, o qual desviei para que Dan não me visse chorar. Ele se agachou próximo a mim, colocando meu pé machucado em seu colo, preso em sua mão firme. Dessa vez ele não retirou sua camisa para protegê-lo, e sim cortou um pedaço das vestes de Augusto que jazia no chão. 

Vi-o, voltando meu rosto, limpar uma parte do sangue com um pedaço, enrolando firmemente meu pé com o outro.  E então disse para mim mesma obrigada, tão baixo, que imagino que ele não tenha ouvido.

Ainda sem dirigir qualquer palavra a mim, se aproximou do meu corpo, levantando-o. Eu me equilibrei numa única perna, apoiando meu braço em volta do seu pescoço, e saltitei pelo caminho. Passando pela porta despedaçada pelo seu chute certeiro, me vi na ante-sala onde havia outro corpo morto, além dos três deixados na pequena sala.

O braço firme de Dan ao redor da minha cintura me levantava enquanto eu descia os degraus, incapaz de dizer uma palavra. Eu me sentia a pior pessoa do mundo, se eu ainda pudesse ser considerada uma pessoa, e sabia que qualquer palavra só atrapalharia tudo.

Dan me ajudou a sentar no banco do passageiro, já conhecido por mim, e se dirigiu à porta do motorista. O sol já descia do seu ponto mais alto, e já devia estar perto das quatro horas da tarde. O dia estava quente e ensolarado, e minha cabeça latejava sonolenta.

Em poucos segundos, já percorríamos a estrada, no caminho de volta. Dan pisava fundo no acelerador, e olhava apenas para a estrada. O silêncio que se instalara entre nós era ainda mais aterrorizante do que o que preenchera a sala antes de Dan derrubar a porta. E eu me sentia até mesmo incapaz de chorar, no entanto parecia sufocar.

__Eu... __Comecei, lutando contra meu choro patético, em vão. __Eu sinto tanto. Eu... Não imaginava... __Continuei quando ele permaneceu em silêncio, com seu olhar impassível. __Eu nunca poderia imaginar que pessoas assim quisessem matar a minha família. Eu... Não devia ter...

__Você pode ficar calada? __Ouvi Dan dizer, parecendo estar se controlando. __Por favor. Pela primeira vez na sua vida.

Eu me calei assustada. Estava apenas piorando as coisas, contudo ele não podia me odiar. Eu não fizera por mal. Não havia acreditado nele, e isso quase me custara a vida. Não sabia o que dizer, mas aquele silêncio poderia me matar. Além disso, minha mente parecia desacordada, então meu corpo passava a ter vida própria, mesmo latente, e continuei a falar incontrolável.

__Eu não queria... Eu não pensei que isso fosse acontecer... Eu fiz isso pelos meus pais. Eles merecem justiça, e eu pensei que você fosse o culpado, que deveria pagar. Eu não fazia idéia... Eu... __Dan parou o carro subitamente, fazendo uma nuvem de poeira rodear-nos, quando passamos para a beira da estrada. Eu teria sido lançada ao pára-brisa, se ele não tivesse prendido o cinto de segurança ao meu redor.

__Eu não quero saber os seus motivos. __Falou olhando para o pára-brisa à sua frente. __Eu estou tentando fazer com que você não morra por minha causa. E você está tornando isso impossível. Eu vou te deixar no hospital e faça o que quiser.

__Não! __Gritei segurando o seu braço endurecido pela tensão com a qual segurava o volante, que não se moveu ao meu toque, e caindo em prantos. __Não! Agora eu entendo! Eu não vou fazer isso novamente. Eu juro! Eu juro pela alma dos meus pais! Você é a única pessoa que eu tenho.

Ele se virou para encarar meus olhos avermelhados. Estremeci com a profundidade daquele olhar negro e senti a respiração fugir. Meu coração batia descompassado em meu peito, e eu sentia que morreria se ele me deixasse, o que possivelmente era verdade, mas não apenas por ele me passar proteção. Agora, eu percebia que não era a interferência dos meus pais que me mantinha viva, embora ela contribuísse. Dan era a força que me mantinha viva, e eu não tinha razão para viver, exceto para dá-lo motivos para não se decepcionar e para fazê-lo ver que valera a pena salvar a minha vida repetidas vezes.

__Mas não é apenas por isso que eu não quero que você me deixe. Você é a única pessoa que eu tenho, mas eu não preferiria ninguém no seu lugar. __Concluí sentindo meu corpo tremer em convulsão quando soltei seu braço que relaxara, ainda presa em seu olhar intrigante.

Dan continuou a me observar por alguns segundos com uma expressão indecifrável, como se pudesse ler minha alma, o que poderia ser realmente verdade, e pisando no acelerador, ganhou a estrada, deixando uma nuvem de areia para trás. E por algum motivo desconhecido, senti meu coração se aquecer, escarlate de alegria.



Alguns minutos depois já estávamos na frente do hospital. Dan estacionou no lado oposto, observando atentamente a saída. Durante o percurso, eu o percebera olhar para mim repetidas vezes e para o meu pé, cujo sangramento diminuía, enquanto eu me esforçava para me manter desperta, não querendo preocupá-lo, apesar de as vertigens e a sonolência terem se intensificado cada vez mais.

Eu não entendia qual era o plano. Ele não me ajudara a sair do carro, talvez quisesse que eu saísse sozinha e fosse pedir ajuda, sem incriminá-lo. E então percebi que ele estava apenas me deixando, decidira me abandonar para sempre. Tudo bem, menti para mim mesma, contendo as lágrimas. Depois de tudo o que eu fizera não poderia esperar nada diferente. Se eu fora tão infantil para fazer toda aquela bagunça, agora deveria ser adulta para deixá-lo.

Relutante tentei abrir a porta, não querendo prolongar o momento, no entanto o vi segurar minha mão.

__O que você está fazendo?

__Tudo bem. Eu pensei que era para eu ir lá sozinha. Mas eu não preciso de hospital, mesmo.

__É claro que você precisa de um hospital! Só não pode ser esse! E não há nenhum outro hospital nessa cidade! O que eles vão pensar se você aparecer assim?! Eu estou tentando não chamar a atenção, caso seja tão imperceptível. __Exclamou me surpreendendo por estar fugindo de sua constante calma.

Eu me calei, assustando-me quando ele rapidamente abriu a porta e saiu do carro. Pude vê-lo atravessar a rua, sem se importar com os carros, que não eram poucos, uma vez que começava a escurecer, e as pessoas voltavam de seus trabalhos para seus lares.

Acompanhando-o com o olhar logo percebi para onde se dirigia. A mesma enfermeira que me atendera de madrugada saía a pé do hospital. Ela pareceu assustada quando Dan a parou, mas logo o seguiu até o carro. Eu retribuí seu sorriso, sem entender o que se passava, quando ela entrou e se sentou no banco traseiro.

Ela se apresentou como Sarah e fez o mesmo que o médico fizera pela manhã, parecendo preocupada com o que via. Fez algumas perguntas como onde eu estava, que dia era, que não pude responder adequadamente, justamente por não saber as respostas. Dan explicou isso com poucas palavras, no entanto, ela respondeu, que, mesmo assim, meu caso era grave.

Vi Dan estacionar o carro em frente ao que pareceu ser uma farmácia, entregando algumas notas de dinheiro a Sarah.

__Compre o que for necessário, mesmo na pior das hipóteses. E seja breve.

__Na pior das hipóteses ela precisará ir ao hospital. __Respondeu, e me surpreendi com seu tom alto, e sua coragem de enfrentar Dan, que parecia ter o dobro de sua altura.

__Não há essa alternativa. A não ser que você não cuide bem dela.__Retorquiu Dan com seu tom de voz entre persuasivo e autoritário.

__Farei o que for possível. __Finalizou saindo rapidamente do carro. Eu podia sentir o olhar preocupado de Dan e sua insegurança ao me avaliar, e me perguntava por que ele parecia tão aflito, mas logo Sarah retornou com inúmeras sacolas, afastando meus pensamentos.

__Eu vou colocá-la no banco de trás. __Falou Dan, ajudando-me a sair do carro, quando viu diminuir o movimento na entrada da farmácia. Ele me deitou no banco traseiro, e Sarah começou seu trabalho, perfurando minha veia, e conseguindo na primeira tentativa iniciar minha hidratação endovenosa.

Eu mal vi o tempo passar, e Dan já estacionava o carro na frente da casa, da qual eu me empenhara e me sacrificara tanto para sair, e para a qual eu só queria retornar. Ele me carregou pelos braços, enquanto Sarah seguia atrás segurando meu soro, esforçando-se para acompanhar o ritmo acelerado dos passos de Dan.

Foi com alívio que fui deitada em minha cama. Ela nunca me parecera tão confortável, e eu nunca a desejara tanto. Dan não falou nada e saiu do quarto, retornando com um cabide para chapéus e casacos no qual Sarah prendeu o soro. E desde então não o vi.

Sarah permaneceu na cabeceira da minha cama, parecendo preocupada. Tentei perguntá-la porque ela fazia aquilo, contudo, me impediu de falar, dizendo para eu tentar descansar. E acabou respondendo minhas perguntas de qualquer forma.

__Você parecia desesperada hoje de manhã. __Começou limpando o meu pé com álcool etílico. Eu reprimi meu grito de dor, apesar de que os tecidos do meu pé já estavam quase insensíveis. Sarah olhou para meu ferimento preocupada, enquanto aplicava anestesia local. __Eu imaginei que você fugiria, só não entendia o porquê. E continuo sem querer entendê-lo. Quando o rapaz retornou para o leito e não encontrou você, ficou transtornado, e eu vi que não tinha feito o certo, deixando você sozinha. Mas você devia ter seus motivos, então não me importei, embora suspeitasse que não fosse ter bons resultados. Imagine minha surpresa quando o vi retornar ao hospital, dizendo que você estava muito mal, e como queria abafar a confusão, quis que eu tratasse você na sua casa, me oferecendo 30 mil reais pelo meu silêncio. Eu aceitaria de qualquer maneira cuidar de você, e ainda preciso tanto desse dinheiro. Minha casinha está tão acabada.
__Mas do que eu estou falando?! __Perguntou dando um sorriso triste, enquanto finalizava meu curativo. __ Só fico falando de mim. E você, menina?! Como foi se meter numa confusão dessas?! É melhor você não me responder. O rapaz me pediu para não ser curiosa, e sei que é melhor não ser. Mas, eu sempre vou rezar por você. Não se preocupe, tudo vai ficar bem. __Disse sorrindo. E eu pedi que dessa vez fosse verdade.

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