Eu
estou de volta à minha cama, de onde nunca deveria ter saído. Começo a me
acostumar com essa situação. Acordando e tudo parecendo um sonho distante. Um
terrível pesadelo. Estou sozinha, e a luz da noite que entra pela janela, com
as persianas abertas, ilumina o quarto.
Minha
posição está desconfortável, mas não posso me mover, pois novamente estou com a
agulha do soro presa ao meu braço. Ele corre numa velocidade maior do que
antes, e me surpreendo por ainda ter algum sangue. Não sou só eu que estou surpresa.
A enfermeira Sarah que entra pela porta do meu quarto sorrindo, enquanto traz
os medicamentos em diferentes seringas numa bandeja metálica, me congratula,
dizendo que surpreendentemente estou melhor.
Ela
perfura o recipiente do soro com as diferentes seringas, injetando seus
conteúdos multicoloridos. Sinto-a acariciar minha testa, e percebo que não é
apenas com o objetivo de avaliar minha temperatura.
É
bom ter alguém para cuidar de mim. Eu seguro sua mão, e a viro, beijando-a e
dizendo obrigada. Ela sorri com os olhos marejados, e beija minha testa,
sussurrando em meu ouvido:
__Não
é a mim que você deve agradecer.
__Eu
sei. __Respondo, contendo, sem sucesso, meu pranto. E eu não estou mentindo.
Sarah
se afasta e me recomenda que eu durma, quando fecha a porta. No entanto, nem
que eu quisesse, conseguiria.
Fecho
os olhos, e ainda posso ver o olhar glacial de Dan ao entrar na sala. Eu tremia
em prantos, quando ele se aproximou para me levantar. Desviei o olhar,
envergonhada, sem palavras. Eu não merecia que mais uma vez ele me salvasse
depois de tudo. E eu me odiava por sempre acabar precisando ser salva. Por mais
que eu pensasse estar fazendo o certo, sempre fazia o errado, e Dan precisava
surgir, me salvar e consertar tudo.
Escondi-me
entre meus cabelos, que cobriam o meu rosto, o qual desviei para que Dan não me
visse chorar. Ele se agachou próximo a mim, colocando meu pé machucado em seu
colo, preso em sua mão firme. Dessa vez ele não retirou sua camisa para
protegê-lo, e sim cortou um pedaço das vestes de Augusto que jazia no
chão.
Vi-o,
voltando meu rosto, limpar uma parte do sangue com um pedaço, enrolando
firmemente meu pé com o outro. E então disse
para mim mesma obrigada, tão baixo, que imagino que ele não tenha ouvido.
Ainda
sem dirigir qualquer palavra a mim, se aproximou do meu corpo, levantando-o. Eu
me equilibrei numa única perna, apoiando meu braço em volta do seu pescoço, e
saltitei pelo caminho. Passando pela porta despedaçada pelo seu chute certeiro,
me vi na ante-sala onde havia outro corpo morto, além dos três deixados na pequena
sala.
O
braço firme de Dan ao redor da minha cintura me levantava enquanto eu descia os
degraus, incapaz de dizer uma palavra. Eu me sentia a pior pessoa do mundo, se
eu ainda pudesse ser considerada uma pessoa, e sabia que qualquer palavra só
atrapalharia tudo.
Dan
me ajudou a sentar no banco do passageiro, já conhecido por mim, e se dirigiu à
porta do motorista. O sol já descia do seu ponto mais alto, e já devia estar
perto das quatro horas da tarde. O dia estava quente e ensolarado, e minha
cabeça latejava sonolenta.
Em
poucos segundos, já percorríamos a estrada, no caminho de volta. Dan pisava
fundo no acelerador, e olhava apenas para a estrada. O silêncio que se
instalara entre nós era ainda mais aterrorizante do que o que preenchera a sala
antes de Dan derrubar a porta. E eu me sentia até mesmo incapaz de chorar, no
entanto parecia sufocar.
__Eu...
__Comecei, lutando contra meu choro patético, em vão. __Eu sinto tanto. Eu...
Não imaginava... __Continuei quando ele permaneceu em silêncio, com seu olhar
impassível. __Eu nunca poderia imaginar que pessoas assim quisessem matar a
minha família. Eu... Não devia ter...
__Você
pode ficar calada? __Ouvi Dan dizer, parecendo estar se controlando. __Por
favor. Pela primeira vez na sua vida.
Eu
me calei assustada. Estava apenas piorando as coisas, contudo ele não podia me
odiar. Eu não fizera por mal. Não havia acreditado nele, e isso quase me
custara a vida. Não sabia o que dizer, mas aquele silêncio poderia me matar.
Além disso, minha mente parecia desacordada, então meu corpo passava a ter vida
própria, mesmo latente, e continuei a falar incontrolável.
__Eu
não queria... Eu não pensei que isso fosse acontecer... Eu fiz isso pelos meus
pais. Eles merecem justiça, e eu pensei que você fosse o culpado, que deveria
pagar. Eu não fazia idéia... Eu... __Dan parou o carro subitamente, fazendo uma
nuvem de poeira rodear-nos, quando passamos para a beira da estrada. Eu teria
sido lançada ao pára-brisa, se ele não tivesse prendido o cinto de segurança ao
meu redor.
__Eu
não quero saber os seus motivos. __Falou olhando para o pára-brisa à sua
frente. __Eu estou tentando fazer com que você não morra por minha causa. E
você está tornando isso impossível. Eu vou te deixar no hospital e faça o que
quiser.
__Não!
__Gritei segurando o seu braço endurecido pela tensão com a qual segurava o
volante, que não se moveu ao meu toque, e caindo em prantos. __Não! Agora eu
entendo! Eu não vou fazer isso novamente. Eu juro! Eu juro pela alma dos meus
pais! Você é a única pessoa que eu tenho.
Ele
se virou para encarar meus olhos avermelhados. Estremeci com a profundidade
daquele olhar negro e senti a respiração fugir. Meu coração batia descompassado
em meu peito, e eu sentia que morreria se ele me deixasse, o que possivelmente
era verdade, mas não apenas por ele me passar proteção. Agora, eu percebia que
não era a interferência dos meus pais que me mantinha viva, embora ela
contribuísse. Dan era a força que me mantinha viva, e eu não tinha razão para
viver, exceto para dá-lo motivos para não se decepcionar e para fazê-lo ver que
valera a pena salvar a minha vida repetidas vezes.
__Mas
não é apenas por isso que eu não quero que você me deixe. Você é a única pessoa
que eu tenho, mas eu não preferiria ninguém no seu lugar. __Concluí sentindo
meu corpo tremer em convulsão quando soltei seu braço que relaxara, ainda presa
em seu olhar intrigante.
Dan
continuou a me observar por alguns segundos com uma expressão indecifrável,
como se pudesse ler minha alma, o que poderia ser realmente verdade, e pisando
no acelerador, ganhou a estrada, deixando uma nuvem de areia para trás. E por
algum motivo desconhecido, senti meu coração se aquecer, escarlate de alegria.
Alguns
minutos depois já estávamos na frente do hospital. Dan estacionou no lado
oposto, observando atentamente a saída. Durante o percurso, eu o percebera
olhar para mim repetidas vezes e para o meu pé, cujo sangramento diminuía,
enquanto eu me esforçava para me manter desperta, não querendo preocupá-lo,
apesar de as vertigens e a sonolência terem se intensificado cada vez mais.
Eu
não entendia qual era o plano. Ele não me ajudara a sair do carro, talvez
quisesse que eu saísse sozinha e fosse pedir ajuda, sem incriminá-lo. E então percebi
que ele estava apenas me deixando, decidira me abandonar para sempre. Tudo bem,
menti para mim mesma, contendo as lágrimas. Depois de tudo o que eu fizera não
poderia esperar nada diferente. Se eu fora tão infantil para fazer toda aquela
bagunça, agora deveria ser adulta para deixá-lo.
Relutante
tentei abrir a porta, não querendo prolongar o momento, no entanto o vi segurar
minha mão.
__O
que você está fazendo?
__Tudo
bem. Eu pensei que era para eu ir lá sozinha. Mas eu não preciso de hospital,
mesmo.
__É
claro que você precisa de um hospital! Só não pode ser esse! E não há nenhum
outro hospital nessa cidade! O que eles vão pensar se você aparecer assim?! Eu
estou tentando não chamar a atenção, caso seja tão imperceptível. __Exclamou me
surpreendendo por estar fugindo de sua constante calma.
Eu
me calei, assustando-me quando ele rapidamente abriu a porta e saiu do carro.
Pude vê-lo atravessar a rua, sem se importar com os carros, que não eram
poucos, uma vez que começava a escurecer, e as pessoas voltavam de seus
trabalhos para seus lares.
Acompanhando-o
com o olhar logo percebi para onde se dirigia. A mesma enfermeira que me
atendera de madrugada saía a pé do hospital. Ela pareceu assustada quando Dan a
parou, mas logo o seguiu até o carro. Eu retribuí seu sorriso, sem entender o
que se passava, quando ela entrou e se sentou no banco traseiro.
Ela
se apresentou como Sarah e fez o mesmo que o médico fizera pela manhã,
parecendo preocupada com o que via. Fez algumas perguntas como onde eu estava,
que dia era, que não pude responder adequadamente, justamente por não saber as
respostas. Dan explicou isso com poucas palavras, no entanto, ela respondeu,
que, mesmo assim, meu caso era grave.
Vi
Dan estacionar o carro em frente ao que pareceu ser uma farmácia, entregando algumas
notas de dinheiro a Sarah.
__Compre
o que for necessário, mesmo na pior das hipóteses. E seja breve.
__Na
pior das hipóteses ela precisará ir ao hospital. __Respondeu, e me surpreendi
com seu tom alto, e sua coragem de enfrentar Dan, que parecia ter o dobro de
sua altura.
__Não
há essa alternativa. A não ser que você não cuide bem dela.__Retorquiu Dan com
seu tom de voz entre persuasivo e autoritário.
__Farei
o que for possível. __Finalizou saindo rapidamente do carro. Eu podia sentir o
olhar preocupado de Dan e sua insegurança ao me avaliar, e me perguntava por
que ele parecia tão aflito, mas logo Sarah retornou com inúmeras sacolas,
afastando meus pensamentos.
__Eu
vou colocá-la no banco de trás. __Falou Dan, ajudando-me a sair do carro,
quando viu diminuir o movimento na entrada da farmácia. Ele me deitou no banco
traseiro, e Sarah começou seu trabalho, perfurando minha veia, e conseguindo na
primeira tentativa iniciar minha hidratação endovenosa.
Eu
mal vi o tempo passar, e Dan já estacionava o carro na frente da casa, da qual
eu me empenhara e me sacrificara tanto para sair, e para a qual eu só queria
retornar. Ele me carregou pelos braços, enquanto Sarah seguia atrás segurando
meu soro, esforçando-se para acompanhar o ritmo acelerado dos passos de Dan.
Foi
com alívio que fui deitada em minha cama. Ela nunca me parecera tão
confortável, e eu nunca a desejara tanto. Dan não falou nada e saiu do quarto,
retornando com um cabide para chapéus e casacos no qual Sarah prendeu o soro. E
desde então não o vi.
Sarah
permaneceu na cabeceira da minha cama, parecendo preocupada. Tentei perguntá-la
porque ela fazia aquilo, contudo, me impediu de falar, dizendo para eu tentar
descansar. E acabou respondendo minhas perguntas de qualquer forma.
__Você
parecia desesperada hoje de manhã. __Começou limpando o meu pé com álcool
etílico. Eu reprimi meu grito de dor, apesar de que os tecidos do meu pé já
estavam quase insensíveis. Sarah olhou para meu ferimento preocupada, enquanto
aplicava anestesia local. __Eu imaginei que você fugiria, só não entendia o
porquê. E continuo sem querer entendê-lo. Quando o rapaz retornou para o leito
e não encontrou você, ficou transtornado, e eu vi que não tinha feito o certo,
deixando você sozinha. Mas você devia ter seus motivos, então não me importei,
embora suspeitasse que não fosse ter bons resultados. Imagine minha surpresa
quando o vi retornar ao hospital, dizendo que você estava muito mal, e como
queria abafar a confusão, quis que eu tratasse você na sua casa, me oferecendo
30 mil reais pelo meu silêncio. Eu aceitaria de qualquer maneira cuidar de
você, e ainda preciso tanto desse dinheiro. Minha casinha está tão acabada.
__Mas do que eu estou falando?! __Perguntou
dando um sorriso triste, enquanto finalizava meu curativo. __ Só fico falando
de mim. E você, menina?! Como foi se meter numa confusão dessas?! É melhor você
não me responder. O rapaz me pediu para não ser curiosa, e sei que é melhor não
ser. Mas, eu sempre vou rezar por você. Não se preocupe, tudo vai ficar bem.
__Disse sorrindo. E eu pedi que dessa vez fosse verdade.
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