Pouco tempo depois já
estamos na estrada novamente. Mal consigo divisar as imagens que passam numa
velocidade absurda pela janela do carro. A lua está cheia no seu ponto mais
alto, iluminando com dificuldade a estrada, que permanece na escuridão.
O farol do carro consegue iluminar apenas alguns metros à
frente, nos permitindo ver as luzes de sinalização. A estrada
surpreendentemente está em boas condições, e vejo alarmada no painel do carro o
velocímetro passar dos 180 km/h.
Protejo-me
dentro do casaco de Dan que já veste outro. Enquanto terminava de colocar
minhas poucas roupas e meus objetos pessoais na pequena mala que Dan havia me
entregue, ele entrou no quarto recomendando que eu usasse minha calça jeans e
uma camiseta que me aquecesse.
É
estranho que nessa cidade, apesar de não saber se já saímos de suas fronteiras,
seja tão quente de dia, e tão frio à noite. Até mesmo com os vidros do carro
fechados, para evitar o vento gelado cortante, e com o aquecedor ligado, tenho
calafrios.
Ou
talvez seja o medo. Dan dirige olhando cuidadosamente a estrada e permanece em
silêncio. Ele parece quase apreensivo. E é essa apreensão, para a qual não vejo
motivos, uma vez que acredito ter tido um dia maravilhoso e calmo, quase
normal, que me aflige.
As
gotas de chuva começam a atingir as janelas, inicialmente como lágrimas, mas
logo o barulho de suas colisões é quase ensurdecedor. O movimento rápido do
limpador do pára-brisa que sem sucesso tenta melhorar a visão da estrada me
assusta. Procuro o olhar de Dan que continua fixo na estrada, acelerando ainda
mais.
Nós
agora parecemos estar subindo, e percebo estarmos rodeando uma serra. Olho pela
janela, mas é difícil enxergar alguma coisa com as pancadas de chuva. No
entanto, aflita, vejo um abismo circundando a estrada, com o rio turbulento
pela violência da tempestade.
Uma
angústia me invade o peito, como uma sensação ruim de premonição. Eu não sei o
que esperar, mas se for pior do que o que já passei, talvez a morte seja
melhor. Tento tirar essas idéias mórbidas da minha mente e numa tentativa
desesperada de conseguir, falo para Dan:
__Você
faz idéia de quem pode ter sido?__Pergunto numa voz baixa, pouco audível frente
às pancadas de chuva contra o carro.
__Talvez.
__Começa ainda olhando para a estrada, fazendo uma curva, nos deixando ainda
mais próximos do abismo. Volto a olhar para a estrada, confortada por sua voz
parecer quase calma, contrastando com o carro que corre em toda velocidade. No
entanto, Dan me surpreende quando continua. __Aqueles homens não pareciam estar
procurando você. Eles deviam estar a trabalho, sob ordens de algum chefe que
deve ter sido o mandante. Eles não eram executores, apenas subordinados
querendo ganhar algum dinheiro.
__Eles
não foram pagos para me matar?
__Não.
Mas não poderiam perder essa excelente demonstração de lealdade. Se tivessem
matado você... __Prossegue falando lentamente, apesar da rapidez com que
voltamos à estrada normal, para meu alívio. __Passariam a fazer parte do
primeiro comando. Da alta cúpula.
__Por
que eu e minha família somos tão importantes?
__Eu
não sei. Mas o chefe deles queria muito a morte da sua família imediatamente,
tanto que pagou o preço que eu exigi. E não apenas a mim. Aquele homem na sua
festa, também havia sido pago. Porém, era um amador.
__Por
que pagar mais de uma pessoa?
__Ele
pediu com urgência. Ele não queria que sua família ficasse viva por muito
tempo.
__Você
se encontrou com ele?! __Pergunto curiosa sentindo um frio se espalhar no meu
abdome.
__Não.
Eu não sei quem são eles. Eu tenho alguns contatos que se comunicaram com
contatos deles. Eu recebi o dinheiro e pronto.
__É.
E você matou meus pais. __Sussurro olhando novamente pela janela, vendo os
galhos das árvores se debaterem violentamente com a força do vento, e eu me
surpreendo por não começar a chorar.
Quando
ele desvia o olhar da estrada e encara meus olhos, contra minha vontade, as
lágrimas que pareciam esgotadas transbordam.
__É.
__Ele responde. E eu não me importo que o silêncio retorne com todo seu poder.
Não sei se conseguiria falar novamente sem cair em prantos.
O
dia ainda não amanheceu quando Dan estaciona seu carro na área externa de um
bonito hotel fazenda, em estilo colonial, o qual pareceria uma boa opção de
lazer, se não fossem as circunstâncias. Ele se situa na periferia da cidade,
não muito pequena, mas parecendo extremamente aconchegante, apesar de mal
termos conseguido vê-la, com a escuridão.
Há
decorações de Natal por todo lado, e até mesmo um presépio na varanda. Faltam
apenas quatro dias para o Natal. Distraio-me relembrando o quanto meus pais
sempre cultivaram o espírito natalino. Era uma tradição montar a árvore, cada
ano com novos enfeites, nos quais colocávamos o que desejávamos para o ano
seguinte. Meus pais sempre me deram ótimos presentes, no entanto, ainda posso
ouvir minha mãe dizendo que o mais importante eram as palavras que escrevíamos
nos pingentes, amor, paz, sabedoria, saúde, felicidade, entre outras.
Embora
uma tristeza invada meu peito, ela não é de todo ruim, é apenas a lamentação da
perda, do tempo que não volta mais. Mas é uma boa sensação só ter lembranças
boas dos meus pais.
A
chuva está mais calma. Apenas um chuvisco se mistura com o vento forte. Eu me
aperto dentro do casaco, e aceito a ajuda de Dan quando me abraça, ajudando-me
a correr até a varanda, para nos protegermos da garoa.
Quando
Dan abre a porta, ouço o barulho de um sino que desperta um jovem rapaz quase
adormecido na recepção. O hotel parece uma antiga e espaçosa fazenda, ainda com
seus traços rústicos, seus móveis de madeira e objetos envelhecidos.
O
rapaz sorri envergonhado por termos flagrado seu momento de descanso. Ele olha
para o relógio pendurado acima de sua cabeça, e faço o mesmo, faltam poucos
minutos para as 6 horas da manhã.
Ele
se apresenta como César, e chama outro rapaz ainda mais jovem, para o qual Dan
entrega a chave do carro, antes de iniciar suas perguntas:
__Bom
dia. Vocês fizeram reserva?
__Sim.
__Inicia Dan. __Danilo e Letícia Miranda. Eu liguei ontem.
Contenho
minha expressão de surpresa. Danilo! Será esse o nome dele verdadeiro? Eu já
sabia não ser Daniel. Mesmo assim, ele não entregaria seu nome tão fácil.
Vejo-o entregar nossos documentos de identidade falsos. Não faço idéia como ele
conseguiu, mas é a mesma foto horrível da minha carteira de identidade
original.
O
jovem rapaz avalia a minha data de nascimento. Eu faço o mesmo, e segundo ela
já tenho 18 anos.
__Vocês
são recém-casados?! Tão jovens... __Observa enquanto vejo seus olhos muito
verdes se direcionar a minha barriga ainda escondida pelo grosso casaco. É
quase cômico ele achar que eu possa estar grávida. Então, decido tirar o
casaco, para tirá-lo da dúvida.
Ele
sorri aliviado, corando. E Dan me abraça carinhosamente, dando o seu melhor sorriso
desconcertante.
__É.
Tivemos sorte de nos conhecermos cedo, e não quisemos deixar a oportunidade
passar. __Sorri, enquanto recebe novamente as chaves do carro, pegando uma das
malas que o outro rapaz faz esforço para carregar. O carregador tenta recusar
sua ajuda, no entanto aceita agradecido. Colocando a mala em seu ombro, sem
dificuldades, Dan pergunta:
__Já
está tudo certo?! Podemos ir para o quarto?!
__Sim.
Aqui está a chave. Quantos dias vocês pretendem ficar?
__Uns
dois.
__Só?!
Fiquem para o Natal. A cidade fica linda, e nós temos tantos festejos na praça
pública. E é muito romântico nessa época do ano. Talvez até neve, como no ano
passado.
Dessa
vez, não contenho meu grito de excitação. Neve! Meu pai planejava nos levar a
uma viagem na Europa quando eu completasse 18 anos, viajaríamos por todos os
países, e até iríamos a uma estação de esqui, uma vez que sempre que
planejávamos, seus negócios o impediam de viajar para muito longe do Brasil.
__Vamos
ver. __Continua Dan. __Temos tantos lugares para ver em tão pouco tempo. __Ele
então me abraça novamente, ajudando-me a andar. O recepcionista dá a volta para
nos cumprimentarmos, e seu olhar se fixa no meu pé, ainda enfaixado dentro da
minha sandália. Dan também percebe e, dando mais um de seus sorrisos
desconcertantes, responde:
__Acidentes
de lua-de-mel. Nós já vivemos grandes aventuras desde que nos unimos.
__É
verdade. __Concordo. E não estou exagerando.

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