Eu
acordo com o cheiro de comida. Eu não comia nada há dias. Minha mente ainda
sonolenta demorou a reconhecer onde eu estava, até que me percebi deitada no
sofá no qual passara a maior parte da noite.
Espreguiçando-me,
vejo Dan na cozinha, abrindo a geladeira e se dirigindo ao fogão. Ele agora
veste uma camiseta cor de pele, ainda com a mesma calça jeans. Ajeito o meu
cabelo e passo a mão pelo rosto. Eu me sinto melhor, e isso me parece injusto.
Eu ainda deveria estar tendo os pesadelos, e acabo de acordar de um sono sem
sonhos, calmo como o de uma criança.
A
idéia de poder estar esquecendo meus pais me apavora. No entanto, talvez sejam
eles atendendo a meus pedidos, deixando-me mais calma e forte para fazer o que
deve ser feito.
Dan
se vira, e quase posso ver um pouco de humor em seus olhos, talvez meu aspecto
esteja mesmo tão horrível quanto imagino. O cheiro de comida faz meu estômago
dar um ronco alto. Eu me aperto contra ele quando vejo Dan sorrir,
envergonhada.
__Eu
comprei algumas coisas para você. __Diz apontando para algumas sacolas de
compras em cima do balcão. __Algumas roupas e produtos de higiene. Mas você
pode comer logo se quiser.
__Obrigada.
__Agradeço timidamente, sem encarar seu olhar quase divertido. Ele deve me
achar imunda por imaginar que eu não me lavara no dia anterior, mas isso é melhor
do que suspeitar de que eu usara seus produtos, como eu fizera, por não ter
opção.
__Eu
sempre cozinhei apenas para mim, então a comida não é muita boa. No entanto, eu
não poderia arriscar que você quebrasse outro prato do restaurante.
Senti-me
ainda mais envergonhada, especialmente quando percebo que ele deve ter limpado
a minha sujeira, uma vez que o chão da sala estava impecável. Levanto-me quando
ele volta a se concentrar na frigideira, na qual percebo estarem sendo fritos
alguns ovos. Pego as sacolas e vou para o meu quarto sem olhar novamente para
Dan.
Jogo
o conteúdo das sacolas na cama. Há duas camisetas, um short, uma calça jeans,
dois vestidos, escova de dente, creme dental, sabonete, desodorante, xampu,
condicionador, e finalmente um pente. Envergonhada percebo algumas calcinhas e
um pacote de absorventes. Felizmente, não encontro nenhum sutiã, seria embaraçoso
vê-lo decidir seu tamanho. Por debaixo do meu vestido ainda estava minha mini
blusa, mas não havia sinal do meu antigo pijama.

Visto
uma camiseta e o short. É reconfortante usar uma roupa nova e limpa. Lavo meu
vestido na pia, e saio renovada. Dan está sentado no sofá assistindo ao jornal,
enquanto toma em grandes goles seu refrigerante, com seu prato em seu colo. Ele
parece realmente concentrado na reportagem, e tento não prestar atenção,
evitando o risco de ouvir algo sobre minha família.
Felizmente,
o assunto é mais brando. Tráfico. Nada mais banal.
__Tem
algum lugar em que eu possa estender isso? __Interrompo, mostrando o vestido
que pinga sobre a sacola na qual descansa.
__Eu
faço isso. __Diz ele, colocando seu almoço no centro e se levantando. Entretanto,
quando ele se aproxima para pegar o vestido, eu o afasto.
__Eu
ainda sou sua refém?! Não posso nem ao menos ir ao quintal?! Eu pensei que isso
não fosse um seqüestro.
__Eu
não quero que te vejam. __Ele diz tomando o vestido da minha mão, contra minha
resistência.
__E
como você fez para comprar todas essas roupas femininas? Ninguém desconfiou de
que havia uma garota na história?!
__Eu
não comprei.
__Você
roubou?! Meu Deus! Você ganhou quase dez milhões de reais e precisa roubar
roupas?!
Ele
me encara entediado. Faz menção de falar, mas acaba se calando enquanto sai
pela porta da frente, com meu vestido pingando no chão.
Aproveito
para ir à cozinha e me servir. Mesmo que o almoço consista em ovos fritos,
arroz com ervilhas e salada de alface e tomate, me parece extremamente
apetitoso. Sirvo-me de um copo de refrigerante, e sento-me no sofá, quando uma
reportagem me chama a atenção.
Novamente
minha foto com meus pais. Meu coração acelera e encaro a televisão paralisada.
As lágrimas que já pareciam findas retornam. Levanto-me e me aproximo da TV
como se assim pudesse estar mais perto dos meus pais, uma vez que nem uma foto
deles eu tenho. A reportagem é curta, apenas diz que a causa do incêndio foi
acidental, por um problema na instalação elétrica que já estava desgastada. As
investigações estavam encerradas.
O
vazio toma conta de mim. Investigações encerradas. Ninguém mais se importava
com a morte dos meus pais. No entanto, elas logo seriam reabertas. Assim que eu
fugisse e desse meu depoimento. Eu me importo com a morte dos meus pais. Isso é
a única coisa que importa na minha vida nesse momento.
Antes
de a matéria acabar, Dan entra pela porta e, pegando o controle remoto, muda de
canal para um dos seriados americanos artificiais. Ele continua a beber seu refrigerante
e encara meus olhos chorosos. Tento evitar seus olhos, voltando-me para minha
comida que desce pela minha garganta como papelão.
__Uma
conhecida comprou essas coisas para mim. E ao contrário de você, ela não faz
perguntas. E você vai continuar presa
aqui até que entenda que é o melhor pra você.
__Eu
não salvei a sua vida. E você já salvou a minha vida duas vezes. Não está mais
endividado, e eu posso me cuidar sozinha.
__Realmente
você não salvou a minha vida. Mas facilitou o meu trabalho, e ele é a minha
vida. Não seria nada agradável se você tivesse me descrito para os policiais,
ou me entregado quando eu anulei o Jean. Você me poupou de matar inocentes.
Então vou recompensar você pelas vidas que salvou. __Finaliza, mudando
novamente de canal, sintonizando num documentário.
__Mas
a garota?!
__Que
garota?
__A
que você colocou no meu lugar?! Você a matou. Para me salvar.
__Isso
é um detalhe. Ela já estava morta. Eu a peguei com um amigo. Aliviada?!
Eu
não respondi, terminando de tomar o refrigerante, para me ajudar a engolir a
comida que voltava a ter um gosto bom. Contudo, me surpreende que a resposta
dessa questão seja sim. Eu estava aliviada. Mas não convencida.
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