terça-feira, 14 de agosto de 2012

Capítulo 7 - Assassino


            Eu não pude dormir. Eu não poderia dormir nem que eu quisesse. Se as imagens de meus pais morrendo já vêm a minha mente, sem eu nem ao menos fechar os olhos, o que me aconteceria quando eu adormecesse? Eu não suportaria aquele pesadelo novamente. Isso me apavora. Aliás, o que há de não apavorante na minha vida ultimamente?!

            Permaneço sentada no sofá, no mesmo lugar em que Dan me deixou envergonhada. Eu encaro o vazio da sala, perdida em sua escuridão. Ela não parece tão diferente da minha vida. Eu não sei que horas são, ou há quanto tempo continuo aqui, no entanto estou paralisada pelo medo e pela dor.

            Eu abraço meus joelhos contra o meu peito, protegendo-me do frio que se instalou em minha vida e que me persegue. Não encontro nenhuma fonte de calor, exceto as lágrimas que escorrem pelo meu rosto, deixando rastros de fogo, fazendo meus olhos arderem.

            É estranha a sensação de estar sozinha. Não ter por quem viver, e não ter ninguém por você. Eu sorrio lembrando-me de todos os meus sonhos. A vida parecia apenas estar começando para mim, e agora estou aqui, perdida e desamparada, apenas esperando silenciosamente o seu insidioso fim.

            Se eu soubesse que teria por tão pouco tempo meus pais e minha vida, tudo teria sido tão diferente. Há tantas coisas que eu queria ter feito, há tantas palavras que deveriam ter sido ditas. Sinto-me sufocar pelo silêncio. A dor me abraça e me embala em seu colo, sussurra uma canção conhecida em meu ouvido, dizendo-me que posso chorar. E é isso o que faço.

            Ainda abraçada às minhas pernas, deito no sofá em posição fetal, me perdendo em devaneios. Eu devia tê-los dito que os amava. Que os amo, na verdade. Mesmo que eles não mais estejam comigo, são a única razão de eu estar viva. Eu deveria ter sido uma filha melhor, ter obedecido mais a eles. Por que eu fui dormir tão cedo naquele dia?! Se nós tivéssemos ficado mais tempo conversando, talvez todos tivéssemos morrido juntos, como uma família.

            Eu deveria ter dito a minha mãe como a admirava, como a achava tão linda. Imaginar seu rosto lindo queimado me faz soluçar. Eu deveria ter dito ao meu pai que ele sempre fora meu herói, que eu nunca conhecera homem tão honrado quanto ele.

            Tento conter meus soluços para não acordar Dan. Embora pareça difícil, consigo silenciá-los. Eu não quero que ele veja minha dor, que perceba o quanto seus atos destruíram a minha vida. Não quero satisfazer as felicidades doentias de um psicopata.

            Sinto um nó em minha garganta que nunca será desatado. Como se as minhas lágrimas começassem a se extinguir. Mas elas não podem me abandonar agora, quando mais preciso delas. São a minha maior companhia. E o mínimo que posso fazer por meus pais é derramá-las.

Elas voltam, quando passo minha mão pelo pescoço, e não encontro mais o colar que fora da minha avó paterna, e que meu pai me dera no dia do meu aniversário, dizendo-me que eu era o seu maior orgulho. Relembrando da minha festa, recordo o pedido que fiz ao assoprar as velinhas do meu bolo de aniversário, um bolo de improviso com os meus pais antes de ir para o salão. Marcelo. Esse fora o meu pedido.

Eu não me arrependo de tê-lo feito. Entretanto, eu deveria ter pedido apenas que eu sempre tivesse minha família e meus amigos ao meu lado. E agora não tenho nada, nem família, nem amigos, nem Marcelo.

Ainda posso ver seus olhos e ouvir suas últimas palavras, quando se despediu de mim na quinta-feira, entre nossos beijos em seu carro.

__Então vai ser na segunda-feira?

__O quê?! __Perguntei arfante, distanciando meu rosto do seu.

__A nossa noite.

__Não, vai ser no domingo.

__Eu sei, mas a festa só vai começar lá pra meia-noite, né?!

__É. __Disse sorrindo, abrindo a porta do carro. __Segunda-feira, então.

__Você vai ver. Esse vai ser um dos melhores dias das nossas vidas. Nós nunca nos esqueceremos dele.

__Estou certa que sim. __Continuei sorrindo, e enquanto cumprimentava Xavier, o ouvi dizer:

__Eu te amo.

__Eu também amo você.

E aqui estou eu na segunda-feira que deveria ter sido um dos melhores dias da minha vida, segundo Marcelo. Nisso ele errou, mas estava certo quando disse que eu nunca me esqueceria dele.

Eu imagino Marcelo como estará agora, e isso me acalma. Imagino-o dormindo. Ele deve ter sofrido quando soube da minha morte, e de uma forma egoísta, eu quero que ele tenha sofrido. Não querido morrer, ou ter achado que a vida não fazia mais sentido. Apenas ter sofrido por ter perdido uma garota que ele amava.

Eu não sei se quando tudo isso acabar, se é que um dia acabará, quando Dan for preso, ou terminar o que planeja fazer comigo, e me libertar, procurarei por Marcelo.

Não sei quanto demorará para que isso aconteça, embora espere que seja em breve. Contudo, até lá, Marcelo terá organizado sua vida. Eu havia feito planos com ele, mesmo que apenas na minha mente. Eu nos imaginava indo para a faculdade, namorando, nos casando e tendo filhos, como qualquer garota sonhadora. E eu quero que ele realize esses sonhos, mesmo que não comigo.

Esses sentimentos bons me aliviam a alma. Talvez eu não seja uma garota tão má, responsável pela morte de seus pais. Pelo menos eu deixarei Marcelo livre para continuar sua vida sem mim. Não quero bagunçar tudo. Com certeza, ele deve ter se saído bem no vestibular, assim como espero que tenham ido as meninas.

Ele conhecerá garotas divertidas na faculdade, que o farão esquecer o trágico amor de colegial que ele teve na adolescência. Talvez elas fiquem com pena dele, embora ele já tenha naturalmente todos os atributos para conquistar qualquer garota.

A única coisa que eu espero é que ele guarde o seu anel, assim como o meu, que segundo Dan, ele deve ter tirado do meu dedo antes do enterro, e que nunca se esqueça de que eu sempre o amei, e possivelmente sempre o amarei, enquanto eu viver. Embora eu acredite que não seja muito tempo. Mas será eterno enquanto durar.

Eu beijo o meu dedo, no qual por tão pouco tempo permaneceu o anel que representava o nosso amor, e desejo que sua vida nunca seja tão devastada como a minha, e que eu sempre permaneça como uma lembrança boa em suas doces memórias. Isso já me deixa feliz. E qualquer mínimo de felicidade já é absurdamente o bastante para mim.

Meus pensamentos são interrompidos por Dan que sai do seu quarto, usando apenas sua calça jeans abarrotada, com o cabelo bagunçado, e parecendo sonolento. Ele nem parece perceber a minha presença, enquanto se dirige à cozinha, com passos lentos.

Eu me ajeito no sofá, me sentando e o observo se encaminhar à geladeira, pegando um copo d’água. Ele vira, parecendo notar pela primeira vez minha presença. Seu cabelo está quase engraçado, e eu poderia até sorrir, se ele não me assustasse e eu não o odiasse tanto.

Ele me encara com uma expressão estranha, como se eu fosse louca, ou talvez seja o meu aspecto que o assuste. Não me importo, mas imagino que o meu rosto deva estar todo inchado, e meu cabelo uma bagunça, uma vez que eu não o penteio há dias.

É com esforço que eu não desvio do seu olhar intrigante. Ele não fala nada e bebe a água em um só gole. Ouço o barulho do copo de vidro, quando Dan o deixa na pia de alumínio, enquanto encaro suas costas viradas para mim. Elas estão nuas e percebo algumas tatuagens com significados desconhecidos para mim. Também há uma tribal mais larga rodeando o seu braço direito. Eu nunca tive preconceitos com tatuagens. Mas isso o deixa ainda mais enigmático para mim.

Dan demora mais que o normal à beira da pia, com as mãos apoiadas na bancada, como se estivesse tentando se conter de fazer alguma besteira. A tensão de seus braços faz ressaltar ainda mais seus músculos definidos, e embora eu esteja assustada com o que ele possa estar pensando em fazer, sou incapaz de me mexer, enfeitiçada com seu magnetismo.

Eu o vejo se virar, passando a mão pelo cabelo, que surpreendentemente obedece a ele, voltando à sua forma normal, e me encarar, enquanto se encaminha para o mesmo local em que estivera sentado há algumas horas.

Eu não me movo, presa no seu olhar, esperando que ele faça o primeiro movimento. Ele ainda parece em dúvida, então tento sinalizar para que comece o que quer que esteja tentando fazer, o que o faz dizer, ainda olhando em meus olhos:

__Você faz idéia de quem ou do que eu sou? __Dan pergunta parecendo cansado e incomodado com a conversa que se iniciava.

__Um assassino?! __Eu pergunto, mais afirmando, sem esperar muito para responder.

__Pode se dizer que sim. Mas eu prefiro executor. Todas as pessoas querem matar alguém em especial, qualquer um que o incomode. E como elas não querem sujar suas mãos e têm bastante dinheiro para me pagar, eu faço isso por elas.

Eu permaneço em silêncio. A sala está escura, mas a luz do luar que entra pelas frestas da porta e das poucas janelas me permite ver Dan com detalhes. Ele parece atento a cada gesto e mudança de expressão minha, embora eu permaneça inerte e impassível.

__Alguém me pagou para matar seu pai. __Continua falando compassadamente. __Assim como matar sua mãe e você. E digamos que eu não fiz o serviço completo.

Dan parece esperar que eu esteja assustada. Na verdade, eu estou tão assustada que não consigo expressar. Tudo parece tão irreal, apesar de que eu não deveria me surpreender mais com nada, devido às circunstâncias. Todavia, isso é um absurdo. Quem pagaria para matar os meus pais e a mim?! Nós não tínhamos inimigos. Pelo menos não que eu soubesse. Talvez a incredulidade tenha transparecido no meu rosto, assim como a dúvida, pois Dan continuou.

__Eu não faço idéia de quem tenha sido. Você não precisa saber detalhes. No entanto, eu nunca entro em contato com os mandantes do meu trabalho. Eles me dão metade do dinheiro antes, eu executo, e eles me mandam a metade depois. Sem maiores contatos, eles só sabem do resultado. E eu já recebi as duas metades. Porque para todos você está morta. Eles encontraram o corpo dos seus pais na casa, assim como o da garota que eu coloquei no seu lugar.

__Quanto?__Eu pergunto lentamente. Dan parece curioso com a pergunta, e me olha em dúvida. __Quanto você recebeu por nossas cabeças?! Quanto valeu a morte dos meus pais, e a minha?!

__Eu não falo essas coisas. Na verdade, eu não deveria dizer nada para você.

__É a única coisa que eu quero saber.__Insisto encarando seu olhar.

__Três milhões de euros. __Responde relutante. __Um milhão por cabeça.

É impossível, digo para mim mesma. Quem pagaria quase dez milhões de reais pelas nossas mortes? É impensável. Continuo a encarar Dan tentando decifrar suas verdadeiras intenções. O que ele quer comigo afinal?! Eu o fiz ganhar um milhão de euros, o que era arriscado, pois ainda permanecia viva. Ele está me enganando. É impossível que seja verdade.

__É por isso que eu estou mantendo você em segurança. Eles não podem saber que você está viva.

__O que você ganha com isso?! Se te ofereceram um milhão de euros pela minha morte, porque você já não fez isso?! Manter-me viva, e agora querer me manter em segurança, com o risco de descobrirem, é muito mais complicado.

__Eu gosto de desafios. E você salvou minha vida. Eu quero retribuir. E se você for boazinha, eu levo você para fora do país, para um lugar seguro, onde você poderá recomeçar sua vida em total liberdade.

__Que vida?! __Pergunto começando a ficar alterada. Do que ele está falando?! Lugar seguro?! Recomeçar minha vida?! Eu não quero uma vida nova! Eu só quero minha antiga vida, meus pais, minha casa, meus sonhos, meu vestibular, meu namorado! No entanto, eu não disse isso para ele, porque alguém sem coração não entenderia.

__Eu sei que parece difícil, mas é a única opção.

__Difícil?! Única opção?! Você não sabe nada da minha vida.

__Eu sei muito mais do que você pensa. E não sei se você se lembra, porém eu não era o único.

E então eu lembrei. O homem morto na minha festa de aniversario com a arma. Ele realmente estava tentando me matar, no final das contas. E depois mataria meus pais do mesmo jeito.

__Eu lembro. __Respondo num sussurro, perdida em meus pensamentos.

__Por nada. __Ele responde enquanto se levanta e se encaminha para o quarto, embora eu não esteja tão certa de que diria obrigada.

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