Eu não pude dormir. Eu
não poderia dormir nem que eu quisesse. Se as imagens de meus pais morrendo já
vêm a minha mente, sem eu nem ao menos fechar os olhos, o que me aconteceria
quando eu adormecesse? Eu não suportaria aquele pesadelo novamente. Isso me apavora.
Aliás, o que há de não apavorante na minha vida ultimamente?!
Permaneço sentada no sofá, no mesmo lugar em que Dan me
deixou envergonhada. Eu encaro o vazio da sala, perdida em sua escuridão. Ela
não parece tão diferente da minha vida. Eu não sei que horas são, ou há quanto
tempo continuo aqui, no entanto estou paralisada pelo medo e pela dor.
Eu abraço meus joelhos contra o meu peito, protegendo-me
do frio que se instalou em minha vida e que me persegue. Não encontro nenhuma
fonte de calor, exceto as lágrimas que escorrem pelo meu rosto, deixando
rastros de fogo, fazendo meus olhos arderem.
É estranha a sensação de estar sozinha. Não ter por quem
viver, e não ter ninguém por você. Eu sorrio lembrando-me de todos os meus
sonhos. A vida parecia apenas estar começando para mim, e agora estou aqui,
perdida e desamparada, apenas esperando silenciosamente o seu insidioso fim.
Se eu soubesse que teria por tão pouco tempo meus pais e
minha vida, tudo teria sido tão diferente. Há tantas coisas que eu queria ter
feito, há tantas palavras que deveriam ter sido ditas. Sinto-me sufocar pelo
silêncio. A dor me abraça e me embala em seu colo, sussurra uma canção
conhecida em meu ouvido, dizendo-me que posso chorar. E é isso o que faço.
Ainda abraçada às minhas pernas, deito
no sofá em posição fetal, me perdendo em devaneios. Eu devia tê-los dito que os
amava. Que os amo, na verdade. Mesmo que eles não mais estejam comigo, são a
única razão de eu estar viva. Eu deveria ter sido uma filha melhor, ter obedecido
mais a eles. Por que eu fui dormir tão cedo naquele dia?! Se nós tivéssemos
ficado mais tempo conversando, talvez todos tivéssemos morrido juntos, como uma
família.
Eu deveria ter dito a minha mãe como a admirava, como a
achava tão linda. Imaginar seu rosto lindo queimado me faz soluçar. Eu deveria
ter dito ao meu pai que ele sempre fora meu herói, que eu nunca conhecera homem
tão honrado quanto ele.
Tento conter meus soluços para não acordar Dan. Embora
pareça difícil, consigo silenciá-los. Eu não quero que ele veja minha dor, que
perceba o quanto seus atos destruíram a minha vida. Não quero satisfazer as
felicidades doentias de um psicopata.
Sinto um nó em minha garganta que nunca será desatado.
Como se as minhas lágrimas começassem a se extinguir. Mas elas não podem me
abandonar agora, quando mais preciso delas. São a minha maior companhia. E o
mínimo que posso fazer por meus pais é derramá-las.
Elas
voltam, quando passo minha mão pelo pescoço, e não encontro mais o colar que
fora da minha avó paterna, e que meu pai me dera no dia do meu aniversário,
dizendo-me que eu era o seu maior orgulho. Relembrando da minha festa, recordo
o pedido que fiz ao assoprar as velinhas do meu bolo de aniversário, um bolo de
improviso com os meus pais antes de ir para o salão. Marcelo. Esse fora o meu
pedido.
Eu
não me arrependo de tê-lo feito. Entretanto, eu deveria ter pedido apenas que
eu sempre tivesse minha família e meus amigos ao meu lado. E agora não tenho
nada, nem família, nem amigos, nem Marcelo.
Ainda
posso ver seus olhos e ouvir suas últimas palavras, quando se despediu de mim
na quinta-feira, entre nossos beijos em seu carro.
__Então
vai ser na segunda-feira?
__O
quê?! __Perguntei arfante, distanciando meu rosto do seu.
__A
nossa noite.
__Não,
vai ser no domingo.
__Eu
sei, mas a festa só vai começar lá pra meia-noite, né?!
__É.
__Disse sorrindo, abrindo a porta do carro. __Segunda-feira, então.
__Você
vai ver. Esse vai ser um dos melhores dias das nossas vidas. Nós nunca nos
esqueceremos dele.
__Estou
certa que sim. __Continuei sorrindo, e enquanto cumprimentava Xavier, o ouvi
dizer:
__Eu
te amo.
__Eu
também amo você.
E
aqui estou eu na segunda-feira que deveria ter sido um dos melhores dias da
minha vida, segundo Marcelo. Nisso ele errou, mas estava certo quando disse que
eu nunca me esqueceria dele.
Eu
imagino Marcelo como estará agora, e isso me acalma. Imagino-o dormindo. Ele
deve ter sofrido quando soube da minha morte, e de uma forma egoísta, eu quero
que ele tenha sofrido. Não querido morrer, ou ter achado que a vida não fazia
mais sentido. Apenas ter sofrido por ter perdido uma garota que ele amava.
Eu
não sei se quando tudo isso acabar, se é que um dia acabará, quando Dan for
preso, ou terminar o que planeja fazer comigo, e me libertar, procurarei por
Marcelo.
Não
sei quanto demorará para que isso aconteça, embora espere que seja em breve.
Contudo, até lá, Marcelo terá organizado sua vida. Eu havia feito planos com ele,
mesmo que apenas na minha mente. Eu nos imaginava indo para a faculdade,
namorando, nos casando e tendo filhos, como qualquer garota sonhadora. E eu
quero que ele realize esses sonhos, mesmo que não comigo.
Esses
sentimentos bons me aliviam a alma. Talvez eu não seja uma garota tão má,
responsável pela morte de seus pais. Pelo menos eu deixarei Marcelo livre para
continuar sua vida sem mim. Não quero bagunçar tudo. Com certeza, ele deve ter se
saído bem no vestibular, assim como espero que tenham ido as meninas.
Ele
conhecerá garotas divertidas na faculdade, que o farão esquecer o trágico amor
de colegial que ele teve na adolescência. Talvez elas fiquem com pena dele,
embora ele já tenha naturalmente todos os atributos para conquistar qualquer
garota.
A
única coisa que eu espero é que ele guarde o seu anel, assim como o meu, que
segundo Dan, ele deve ter tirado do meu dedo antes do enterro, e que nunca se
esqueça de que eu sempre o amei, e possivelmente sempre o amarei, enquanto eu
viver. Embora eu acredite que não seja muito tempo. Mas será eterno enquanto
durar.
Eu
beijo o meu dedo, no qual por tão pouco tempo permaneceu o anel que
representava o nosso amor, e desejo que sua vida nunca seja tão devastada como
a minha, e que eu sempre permaneça como uma lembrança boa em suas doces
memórias. Isso já me deixa feliz. E qualquer mínimo de felicidade já é
absurdamente o bastante para mim.
Meus
pensamentos são interrompidos por Dan que sai do seu quarto, usando apenas sua
calça jeans abarrotada, com o cabelo bagunçado, e parecendo sonolento. Ele nem
parece perceber a minha presença, enquanto se dirige à cozinha, com passos
lentos.
Eu
me ajeito no sofá, me sentando e o observo se encaminhar à geladeira, pegando um
copo d’água. Ele vira, parecendo notar pela primeira vez minha presença. Seu
cabelo está quase engraçado, e eu poderia até sorrir, se ele não me assustasse
e eu não o odiasse tanto.
Ele
me encara com uma expressão estranha, como se eu fosse louca, ou talvez seja o
meu aspecto que o assuste. Não me importo, mas imagino que o meu rosto deva
estar todo inchado, e meu cabelo uma bagunça, uma vez que eu não o penteio há
dias.
É
com esforço que eu não desvio do seu olhar intrigante. Ele não fala nada e bebe
a água em um só gole. Ouço o barulho do copo de vidro, quando Dan o deixa na
pia de alumínio, enquanto encaro suas costas viradas para mim. Elas estão nuas
e percebo algumas tatuagens com significados desconhecidos para mim. Também há
uma tribal mais larga rodeando o seu braço direito. Eu nunca tive preconceitos
com tatuagens. Mas isso o deixa ainda mais enigmático para mim.
Dan
demora mais que o normal à beira da pia, com as mãos apoiadas na bancada, como
se estivesse tentando se conter de fazer alguma besteira. A tensão de seus
braços faz ressaltar ainda mais seus músculos definidos, e embora eu esteja
assustada com o que ele possa estar pensando em fazer, sou incapaz de me mexer,
enfeitiçada com seu magnetismo.
Eu
o vejo se virar, passando a mão pelo cabelo, que surpreendentemente obedece a
ele, voltando à sua forma normal, e me encarar, enquanto se encaminha para o
mesmo local em que estivera sentado há algumas horas.
Eu
não me movo, presa no seu olhar, esperando que ele faça o primeiro movimento.
Ele ainda parece em dúvida, então tento sinalizar para que comece o que quer
que esteja tentando fazer, o que o faz dizer, ainda olhando em meus olhos:
__Você
faz idéia de quem ou do que eu sou? __Dan pergunta parecendo cansado e
incomodado com a conversa que se iniciava.
__Um
assassino?! __Eu pergunto, mais afirmando, sem esperar muito para responder.
__Pode
se dizer que sim. Mas eu prefiro executor. Todas as pessoas querem matar alguém
em especial, qualquer um que o incomode. E como elas não querem sujar suas mãos
e têm bastante dinheiro para me pagar, eu faço isso por elas.
Eu
permaneço em silêncio. A sala está escura, mas a luz do luar que entra pelas
frestas da porta e das poucas janelas me permite ver Dan com detalhes. Ele
parece atento a cada gesto e mudança de expressão minha, embora eu permaneça
inerte e impassível.
__Alguém
me pagou para matar seu pai. __Continua falando compassadamente. __Assim como
matar sua mãe e você. E digamos que eu não fiz o serviço completo.
Dan
parece esperar que eu esteja assustada. Na verdade, eu estou tão assustada que
não consigo expressar. Tudo parece tão irreal, apesar de que eu não deveria me
surpreender mais com nada, devido às circunstâncias. Todavia, isso é um absurdo.
Quem pagaria para matar os meus pais e a mim?! Nós não tínhamos inimigos. Pelo
menos não que eu soubesse. Talvez a incredulidade tenha transparecido no meu
rosto, assim como a dúvida, pois Dan continuou.
__Eu
não faço idéia de quem tenha sido. Você não precisa saber detalhes. No entanto,
eu nunca entro em contato com os mandantes do meu trabalho. Eles me dão metade
do dinheiro antes, eu executo, e eles me mandam a metade depois. Sem maiores contatos,
eles só sabem do resultado. E eu já recebi as duas metades. Porque para todos
você está morta. Eles encontraram o corpo dos seus pais na casa, assim como o
da garota que eu coloquei no seu lugar.
__Quanto?__Eu
pergunto lentamente. Dan parece curioso com a pergunta, e me olha em dúvida.
__Quanto você recebeu por nossas cabeças?! Quanto valeu a morte dos meus pais,
e a minha?!
__Eu
não falo essas coisas. Na verdade, eu não deveria dizer nada para você.
__É
a única coisa que eu quero saber.__Insisto encarando seu olhar.
__Três
milhões de euros. __Responde relutante. __Um milhão por cabeça.
É
impossível, digo para mim mesma. Quem pagaria quase dez milhões de reais pelas
nossas mortes? É impensável. Continuo a encarar Dan tentando decifrar suas
verdadeiras intenções. O que ele quer comigo afinal?! Eu o fiz ganhar um milhão
de euros, o que era arriscado, pois ainda permanecia viva. Ele está me
enganando. É impossível que seja verdade.
__É
por isso que eu estou mantendo você em segurança. Eles não podem saber que você
está viva.
__O
que você ganha com isso?! Se te ofereceram um milhão de euros pela minha morte,
porque você já não fez isso?! Manter-me viva, e agora querer me manter em
segurança, com o risco de descobrirem, é muito mais complicado.
__Eu
gosto de desafios. E você salvou minha vida. Eu quero retribuir. E se você for
boazinha, eu levo você para fora do país, para um lugar seguro, onde você poderá
recomeçar sua vida em total liberdade.
__Que
vida?! __Pergunto começando a ficar alterada. Do que ele está falando?! Lugar
seguro?! Recomeçar minha vida?! Eu não quero uma vida nova! Eu só quero minha
antiga vida, meus pais, minha casa, meus sonhos, meu vestibular, meu namorado!
No entanto, eu não disse isso para ele, porque alguém sem coração não entenderia.
__Eu
sei que parece difícil, mas é a única opção.
__Difícil?!
Única opção?! Você não sabe nada da minha vida.
__Eu
sei muito mais do que você pensa. E não sei se você se lembra, porém eu não era
o único.
E
então eu lembrei. O homem morto na minha festa de aniversario com a arma. Ele
realmente estava tentando me matar, no final das contas. E depois mataria meus
pais do mesmo jeito.
__Eu
lembro. __Respondo num sussurro, perdida em meus pensamentos.
__Por
nada. __Ele responde enquanto se levanta e se encaminha para o quarto, embora
eu não esteja tão certa de que diria obrigada.
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