domingo, 19 de agosto de 2012

Capítulo 9 - Dor


Minha mente parece entorpecida. Vejo as árvores passarem rapidamente pela janela do carro, que segue em seu caminho veloz. Essa cena me é estranhamente familiar. O pano que envolve meu pé já adquire uma coloração avermelhada, no entanto, quando o desenrolo para ver meu ferimento, contendo minhas náuseas, ao vê-lo dilacerado, percebo que o sangramento está diminuindo.

            Aperto novamente o pano ao redor do meu pé, tentando estancá-lo. Não que isso me importe realmente, apenas tento não sujar o carro da polícia.

            Os policiais continuam no banco da frente sem conversar, olhando para a estrada adiante. Eu jamais conseguiria chegar à delegacia, uma vez que ela é no caminho oposto do que eu tomara ao fugir do hospital, e parece ser incrivelmente longe.

            Contenho-me de fazer perguntas quando o policial desvia da estrada, entrando numa trilha de areia por entre as árvores, que mal poderia ser vista por qualquer pessoa na estrada. E nem preciso, pois o motorista, se desviando para me olhar, ainda sorrindo, diz:

            __Espero que você não se importe de não ir para a delegacia. Lá nós não teríamos como cuidar de você, e é melhor termos mais privacidade. Além disso, como nós somos investigadores especiais, esse é o nosso centro de operações. __Diz, indicando com a mão, uma casa que parecia escondida em meio às árvores. Eu me sinto aliviada, ao ver que não estou lidando com meros policiais de meia-idade, gordos e carecas, que não seriam nada perto de Dan, e que achariam que eu estava louca se eu contasse a minha história.

            Há outro carro estacionado em frente à casa, igualmente escuro. O carro no qual estou pára ao seu lado, e os dois policiais saem. Eu percebo como estou enfraquecida quando é com esforço que me arrasto pelo banco traseiro até uma das portas. O policial negro, então, abre a porta para mim, deixando-me apoiar em seu ombro, usando apenas meu pé saudável, enquanto me encaminha, para o interior da humilde casa, pelo caminho de terra.

            Há dois outros policiais na entrada da casa. Um deles me encara parecendo entre surpreso e assustado. Imagino o quanto meu aspecto deve estar horrível, enquanto atravesso uma sala deserta, pouco mobiliada para um centro de operações. Mas é com alívio que aceito a cadeira oferecida pelos dois policiais, quando me adentram numa sala pequena, mobiliada com uma mesa e duas cadeiras, e felizmente sem falso-espelho.

            Esforço-me para me manter desperta. Tudo adquire um tom mais escuro, e vejo a sala se mover num ritmo estranho há minha volta. Vejo luzes piscando pela sala, e com dificuldade aceito o copo d’água que me oferecem, ela está doce, mas o policial explica que colocaram um pouco de açúcar. Sinto a avidez com que meu corpo a ingere, e aceito mais dois copos.  

            Eu vejo que ainda preciso de mais água, no entanto, eles não mais me oferecem, esperando que eu comece a falar. E eu falo.

            Não sei se na ordem certa, ou se faz algum sentido, contudo, as palavras jorram da minha boca, assim como as lágrimas que escorrem pelo meu rosto. A minha fuga, os dias como refém, a minha festa de aniversário, o homem morto que planejava me matar, o noticiário com a foto minha e dos meus pais, todo o meu sofrimento encarcerada, o que eu me lembro do incêndio, dos dias desacordada e dopada, das justificativas insensatas de Dan. Tudo. Tudo.

            Eles parecem tolerantes e interessados no que eu digo. O grisalho permanece á porta, todavia, a última coisa que eu farei é fugir. O negro não mais sorri, mas encara condescendente o meu olhar. Ele não faz anotações, mas vejo seus olhos acompanharem cada movimento meu. Até mesmo me oferece uma caixa de lenços de papel, que agradeço, sem aceitar.

            Eu já não sei mais o que dizer, já tendo falado do meu sofrimento, do quanto me revoltava que a polícia tivesse abandonado as investigações, mas que os perdoava, uma vez que sabia o quanto Dan era profissional e frio, sem deixar quaisquer rastros.

            Eles permanecem calados, me observando atentamente. Isso me incomoda, como se eu esteja também sendo investigada, como se suspeitassem de mim. Retomo meu discurso, percebo que estou repetindo tudo o que já disse, e que o fato de estar chorando, ainda confunde mais minhas palavras, porém não posso parar.

            Depois de tudo isso, eles precisam entender. Eu não me importo comigo, apenas preciso que eles entendam que Dan é um perigo, um assassino perigoso e cruel, que precisam prendê-lo. Eu falo isso, mas eles não parecem mais prestar atenção. Continuo falando em vão, tentando chamar-lhes a atenção, enquanto eles conversam entre si pelo olhar.

            Minha cabeça dói, e a sala volta a girar ao meu redor. Ouço-me continuar a falar, mas não sei mais o que digo. Eles precisam entender. Eles precisam entender, é o que me ouço implorar em voz alta.

            O policial negro, que ouvi o policial grisalho chamar de Hugo, me encara, voltando a sorrir. Sinto-me aliviada, embora o sorriso pareça um tanto irônico. Ele diz, se dirigindo a Augusto, que voltara a rondar a porta:

            __Eu acho que ela está mentindo. O que você acha, Augusto?!

            Meu coração se aperta em meu peito. O que está acontecendo?!

            __Talvez. __Augusto responde me analisando com sua expressão fria e enraivecida.

            __Não... __Começo a dizer numa voz cansada. A sala adquire uma forma cada vez mais confusa, se assemelhando a um caleidoscópio, com suas luzes que continuam a piscar. E eu não consigo imaginar porque eles parecem estar chateados comigo. __Não. Eu... Eu... Não estou mentindo. __Até mesmo minha voz me parece distante, como de outra pessoa, num tom grave e enrolado.

            __Acho que está. __Continua Hugo, ainda sorrindo, com seus olhos quase ferozes me avaliando.

            __Não. __Volto a chorar, e o desespero me invade. Eles não acreditam em mim! O que está acontecendo?! Eu estou dizendo a verdade!

            __Então onde estão seus pais?! __Pergunta Augusto, numa proximidade assustadora, parecendo estar perdendo a paciência.

            __Eles... Estão mortos... Dan...

            __E por que você está viva?!__Continua Hugo, tentando manter a calma.

            __Eu não sei. Dan... Disse que... Eu salvei sua vida. E quis salvar a minha...

            __Hum...__Hugo diz, dando uma gargalhada. __Ele está apaixonado por você, então?!

            __Não... Eu não sei por que ele me salvou. __Eu me esforço para continuar aquele diálogo confuso. Eu não me importo de que eles me achem culpada. Apenas quero que a justiça seja feita, que todos saibam que meus pais foram assassinados. __Eu acho que... É um seqüestro.

            __E quem pagaria o seu resgate?! Seus pais?!

            __Não... Eu não sei o que ele quer comigo.

            __Acho que eu sei. __Hugo sorri com malícia, umedecendo seus lábios com sua língua ferina. __E ele conseguiu?!

            __Não! __Exclamo estupefata com a direção que a conversa está tomando.__ Ele disse que... Alguém o mandou matar minha família. Mas... Eu não acredito.

            __Você acredita em que então?! __Gritou Augusto, não mais se contendo, recebendo um olhar desaprovador de Hugo.

            __Eu não sei. Deve ser um seqüestro... Ou ele quis... Que eu sofresse por não ter morrido com eles... Ou foi o destino... __Digo fatigada. __Que queria que eu entregasse à polícia... O assassino dos meus pais... Antes de me juntar a eles... Por não ter feito isso... Quando pude.

            __O destino?! __Exclama Hugo, sorrindo abertamente. __Deve ter sido mesmo. Mas se você mesma não sabe em que acreditar, imagine nós!

            __Mas... Foi Dan que os matou... Isso eu sei. __Continuo desesperançada.

            __Será?! Você não está nos ajudando, Manuela. __Hugo não parece mais tão simpático, na verdade, parece irritado. __ Onde estão os seus pais?! __Vocifera Hugo, me fazendo encolher contra o meu assento, quando ele se levanta subitamente, derrubando sua cadeira ao chão, e se segurando nas bordas da mesa.

            __Eles estão mortos! __Grito, quando uma descarga de adrenalina me percorre o corpo em pânico. Minha mente se desperta e posso ver que nada está como o planejado. Na verdade, parece que eu saí de um pesadelo para outro ainda maior.

            __E você também deveria estar! __Ouço Augusto gritar, antes de me esbofetear o rosto. Sinto meu rosto queimar, as lágrimas que tentam lavá-lo não aliviam a dor, mas me confortam. Eu me abraço ás minhas pernas, tentando me proteger, e pedindo para que tudo isso seja rápido. Se eles planejam me matar, que sejam breves. Todavia, meu pedido não é atingido.

            __Não se preocupe com o Augusto. __Recomeça Hugo, aproximando-se de mim e retirando meu cabelo do meu rosto. Ele sorri, enquanto encara meus olhos assustados, mas posso ver seu olhar frio e cruel. __Ele está estressado. Nós só estávamos percorrendo a cidade. Imagine nossa surpresa quando a vimos correndo pelas calçadas da cidade. Sangrando e parecendo abatida, mas viva. O Augusto não ficou muito feliz. Mas nós não queremos vê-lo triste, né? Ou mesmo estressado, pois já sabemos como ele fica violento. Você só precisa dizer onde estão seus pais. Fácil, não?!

            __Eles... Estão... Mortos... __Respondo entre lágrimas, sentindo o gosto de sangue nos meus lábios.

Hugo ainda sorri enquanto estapeia meu rosto repetidas vezes, e diz:

__O que você disse mesmo?! Eu não ouvi. Essa sala é tão barulhenta. Estão fora do país?!

            Meu rosto arde, no entanto meu coração dói mais. Uma angústia invade meu peito, mas agradeço por meus pais não terem passado por isso. Eu não faço idéia de quem pode ter querido matá-los, e essa idéia já não parece mais tão absurda para mim. Dan estava certo, alguém o pagara para matar meus pais, e eu sou grata por ele ter feito isso logo, antes que eles precisassem passar por isso.

            Hugo ainda encara meus olhos. Eu sou uma presa fácil. Sinto-me a pessoa mais tola do mundo. No final da contas, Dan me protegia. Á sua maneira, mas não estivera mentindo. Eu espero que ele não me odeie, e entenda meus motivos. Talvez ele tenha salvado minha vida, achando que ela valeria a pena, mas eu não merecia.  É isso o que eu mereço.

            Então eu não sobrevivera para entregar Dan à polícia, afinal. E sim para morrer lentamente. É essa minha punição. Morrer em vão. Ótimo. Vamos entrar no jogo.

            __Estão... Mortos... __Respondo, agradecendo quando o torpor volta a obscurecer minha mente. Talvez isso torne minha morte mais fácil e rápida, e menos dolorosa, não que a dor importe. Só não quero dá-los o prazer de me ver gritar e chorar.

Tanto que mal sinto quando, mal acabando de ter respondido a pergunta, Augusto vem como um tufão para cima de mim, levantando-me num impulso, sem que meus pés encostem o chão, sacudindo-me e falando coisas sem sentido. Eu encaro seus olhos sem entender o que ele está fazendo, e ele me lança contra a parede, na qual me choco, deslizando para o chão.

Vejo Hugo repreender Augusto, dizendo:

__Não podemos matá-la. Precisamos de respostas. Precisamos dela viva! É melhor você se controlar! __Conclui, empurrando Augusto, que levanta uma das cadeiras e se senta, observando a cena em silêncio.

            Hugo senta-se à minha frente, no chão. Seu sorriso irônico permanece em seus lábios. Eu me encolho contra a parede, fitando seu olhar gélido. Sinto minha respiração superficial e acelerada movimentar meu corpo involuntariamente. Confusa, minha mente não consegue associar essa cena com meus pais. Parece que mergulhei no mundo dos pesadelos, e minha vida passada agora faz parte de um mundo distante, de sonhos e alegrias completamente irreais.

            __Você não está ajudando. __Diz, enquanto se aproxima de mim. Ele segura o meu pé machucado e o puxa para si com delicadeza, colocando-o em seu colo. Não faço resistência. Uma sensação ruim sobe do meu peito até minha cabeça, escurecendo minha vista. Pequenos pontos de luz brincam diante dos meus olhos, e eles se intensificam num objeto que vejo Hugo segurar, o qual percebo ser uma faca.

            Eu não entendo, e procuro o rosto de Augusto, esperando que ele me explique, e vejo um brilho feroz em seus olhos, acompanhado de um sorriso torto em seus lábios. Volto meu olhar para Hugo, a sala volta a ficar mais clara, e ele sorri:

            __Acho que não começamos bem. Vamos começar tudo de novo. Eu pergunto, e você responde. Sem mentiras, sem jogos, e sem violência.

            Eu não respondo, mas ele prossegue.

            __Onde estão os seus pais?!

            __...

            __Você está me ouvindo?! __Indaga, segurando meu rosto cuidadosamente. __Onde estão os seus pais?!

            __Eles... __Digo, esforçando-me para que minha boca me obedeça. __Estão... Mortos.

            __Resposta errada. __ Sorri, parecendo decepcionado. Eu tento sorrir de volta, mas em vez de meus lábios obedecerem ao meu comando, eles libertam um grito de dor desesperado quando sinto Hugo perfurar com a ponta da faca o meu ferimento.

            O meu corpo se contorce em dor, num impulso involuntário tento recolher meu pé, numa tentativa de protegê-lo, mas percebo a mão firme de Hugo prendendo-o. Meu rosto está úmido pelas lágrimas e pelas gotículas de suor frio que surgem. Ouço-me chorar gemendo, contra a minha vontade. Como uma criança apavorada, dou um grito assustador, quando ele continua o seu trabalho, perfurando outro ponto do meu pé.

            __Não! Pára! Por favor! Pára! __Escuto minha voz enfraquecida e entrecortada implorar. __O que você quer?!

            __Essa é uma ótima pergunta. __Comenta, limpando a ponta da faca, banhada em sangue, no pano que antes enrolava meu pé. __ E melhor ainda a resposta. Entretanto, você já a conhece.

            __É só o que eu sei. __Choramingo para minha vergonha. __Que eles estão mor... __Porém sou interrompida, pelo ataque súbito de fúria de Augusto, que se levanta da cadeira, e se aproxima do meu rosto, segurando-o com força.

            __Você já disse isso. Eu não agüento mais, Hugo. Vamos acabar logo com ela, e pegar nosso dinheiro.

            Meu corpo relaxa em gozo. Finalmente, o que eu mais espero. Eu sorrio diante da perspectiva de reencontrar meus pais. Peço a Deus que perdoe meus pecados e que me permita ir para o céu, encontrá-los. Contudo, antes que Deus me abra as portas do paraíso, escuto gritos na ante-sala, rapidamente silenciados.

            Não sou apenas eu que percebo a movimentação. Augusto parece assustado, e Hugo se levanta rapidamente, encarando a porta assombrado, como se a qualquer momento por ela fosse entrar o monstro de seus piores pesadelos. Eles pegam suas armas, num movimento instintivo, tão rapidamente que mal sei de onde as tiraram, e as apontam para a porta.

            O silêncio é apavorante. E me angustio por meus pedidos terem sido atrapalhados por aquela estranha interrupção. Ouço apenas o som da minha respiração ofegante, e a tensão dos meus algozes é perceptível. Posso até mesmo vê-los suarem frio em seus ternos caros, e não me impeço de sorrir.

            Não faço idéia do que eles imaginam que possa surgir por essa porta.  No entanto, independente do que seja, fico grata por aquela última vingança. Ver meus torturadores sofrerem como eu sofrera é reconfortante. Não me importo com o que essa repentina ameaça poderá fazer comigo, apenas desejo que ela não prolongue essa demora, e que seja rápida e prática nessa execução.

            Esforço-me para me manter alerta, lutando contra o torpor que me invade, pois de algum modo, não quero perder nenhum detalhe. E antes que eu possa piscar, vejo a porta que antes parecera resistente se abrir num milissegundo, apenas com um chute certeiro de um homem desconhecido.

            Ele é alvejado pelos dois homens que permanecem em suas posições. O corpo do homem é então lançado contra eles, fazendo Hugo cair assustado próximo a mim. Ainda deitado, ele tenta recarregar sua arma, e no outro segundo, o vejo permanecer imóvel no chão, derramando sangue pela boca.

            Antes que eu possa me encolher de volta à parede, vejo Augusto cair da mesma forma, inerte, e encontro o olhar frio de Dan. Eu estava mesmo errada. Tenho a sensação de que esse olhar frio não me abandonará tão cedo.

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