Minha mente parece
entorpecida. Vejo as árvores passarem rapidamente pela janela do carro, que
segue em seu caminho veloz. Essa cena me é estranhamente familiar. O pano que
envolve meu pé já adquire uma coloração avermelhada, no entanto, quando o
desenrolo para ver meu ferimento, contendo minhas náuseas, ao vê-lo dilacerado,
percebo que o sangramento está diminuindo.
Aperto novamente o pano ao redor do meu pé, tentando
estancá-lo. Não que isso me importe realmente, apenas tento não sujar o carro
da polícia.
Os policiais continuam no banco da frente sem conversar,
olhando para a estrada adiante. Eu jamais conseguiria chegar à delegacia, uma
vez que ela é no caminho oposto do que eu tomara ao fugir do hospital, e parece
ser incrivelmente longe.
Contenho-me de fazer perguntas quando o policial desvia
da estrada, entrando numa trilha de areia por entre as árvores, que mal poderia
ser vista por qualquer pessoa na estrada. E nem preciso, pois o motorista, se
desviando para me olhar, ainda sorrindo, diz:
__Espero que você não se importe de não ir para a
delegacia. Lá nós não teríamos como cuidar de você, e é melhor termos mais privacidade.
Além disso, como nós somos investigadores especiais, esse é o nosso centro de
operações. __Diz, indicando com a mão, uma casa que parecia escondida em meio
às árvores. Eu me sinto aliviada, ao ver que não estou lidando com meros
policiais de meia-idade, gordos e carecas, que não seriam nada perto de Dan, e
que achariam que eu estava louca se eu contasse a minha história.
Há outro carro estacionado em frente à casa, igualmente
escuro. O carro no qual estou pára ao seu lado, e os dois policiais saem. Eu
percebo como estou enfraquecida quando é com esforço que me arrasto pelo banco
traseiro até uma das portas. O policial negro, então, abre a porta para mim,
deixando-me apoiar em seu ombro, usando apenas meu pé saudável, enquanto me
encaminha, para o interior da humilde casa, pelo caminho de terra.
Há dois outros policiais na entrada da casa. Um deles me
encara parecendo entre surpreso e assustado. Imagino o quanto meu aspecto deve
estar horrível, enquanto atravesso uma sala deserta, pouco mobiliada para um
centro de operações. Mas é com alívio que aceito a cadeira oferecida pelos dois
policiais, quando me adentram numa sala pequena, mobiliada com uma mesa e duas
cadeiras, e felizmente sem falso-espelho.
Esforço-me para me manter desperta. Tudo adquire um tom
mais escuro, e vejo a sala se mover num ritmo estranho há minha volta. Vejo
luzes piscando pela sala, e com dificuldade aceito o copo d’água que me
oferecem, ela está doce, mas o policial explica que colocaram um pouco de
açúcar. Sinto a avidez com que meu corpo a ingere, e aceito mais dois
copos.
Eu vejo que ainda preciso de mais água, no entanto, eles
não mais me oferecem, esperando que eu comece a falar. E eu falo.
Não sei se na ordem certa, ou se faz algum sentido,
contudo, as palavras jorram da minha boca, assim como as lágrimas que escorrem
pelo meu rosto. A minha fuga, os dias como refém, a minha festa de aniversário,
o homem morto que planejava me matar, o noticiário com a foto minha e dos meus
pais, todo o meu sofrimento encarcerada, o que eu me lembro do incêndio, dos
dias desacordada e dopada, das justificativas insensatas de Dan. Tudo. Tudo.
Eles parecem tolerantes e interessados no que eu digo. O
grisalho permanece á porta, todavia, a última coisa que eu farei é fugir. O
negro não mais sorri, mas encara condescendente o meu olhar. Ele não faz
anotações, mas vejo seus olhos acompanharem cada movimento meu. Até mesmo me
oferece uma caixa de lenços de papel, que agradeço, sem aceitar.
Eu já não sei mais o que dizer, já tendo falado do meu
sofrimento, do quanto me revoltava que a polícia tivesse abandonado as
investigações, mas que os perdoava, uma vez que sabia o quanto Dan era
profissional e frio, sem deixar quaisquer rastros.
Eles permanecem calados, me observando atentamente. Isso
me incomoda, como se eu esteja também sendo investigada, como se suspeitassem
de mim. Retomo meu discurso, percebo que estou repetindo tudo o que já disse, e
que o fato de estar chorando, ainda confunde mais minhas palavras, porém não
posso parar.
Depois de tudo isso, eles precisam entender. Eu não me
importo comigo, apenas preciso que eles entendam que Dan é um perigo, um
assassino perigoso e cruel, que precisam prendê-lo. Eu falo isso, mas eles não
parecem mais prestar atenção. Continuo falando em vão, tentando chamar-lhes a
atenção, enquanto eles conversam entre si pelo olhar.
Minha cabeça dói, e a sala volta a girar ao meu redor.
Ouço-me continuar a falar, mas não sei mais o que digo. Eles precisam entender.
Eles precisam entender, é o que me ouço implorar em voz alta.
O policial negro, que ouvi o policial
grisalho chamar de Hugo, me encara, voltando a sorrir. Sinto-me aliviada,
embora o sorriso pareça um tanto irônico. Ele diz, se dirigindo a Augusto, que
voltara a rondar a porta:
__Eu acho que ela está mentindo. O que você acha,
Augusto?!
Meu coração se aperta em meu peito. O que está
acontecendo?!
__Talvez. __Augusto responde me analisando com sua
expressão fria e enraivecida.
__Não... __Começo a dizer numa voz cansada. A sala
adquire uma forma cada vez mais confusa, se assemelhando a um caleidoscópio,
com suas luzes que continuam a piscar. E eu não consigo imaginar porque eles
parecem estar chateados comigo. __Não. Eu... Eu... Não estou mentindo. __Até
mesmo minha voz me parece distante, como de outra pessoa, num tom grave e
enrolado.
__Acho que está. __Continua Hugo, ainda sorrindo, com
seus olhos quase ferozes me avaliando.
__Não. __Volto a chorar, e o desespero me invade. Eles
não acreditam em mim! O que está acontecendo?! Eu estou dizendo a verdade!
__Então onde estão seus pais?! __Pergunta Augusto, numa
proximidade assustadora, parecendo estar perdendo a paciência.
__Eles... Estão mortos... Dan...
__E por que você está viva?!__Continua Hugo, tentando
manter a calma.
__Eu não sei. Dan... Disse que... Eu salvei sua vida. E
quis salvar a minha...
__Hum...__Hugo diz, dando uma gargalhada. __Ele está
apaixonado por você, então?!
__Não... Eu não sei por que ele me salvou. __Eu me
esforço para continuar aquele diálogo confuso. Eu não me importo de que eles me
achem culpada. Apenas quero que a justiça seja feita, que todos saibam que meus
pais foram assassinados. __Eu acho que... É um seqüestro.
__E quem pagaria o seu resgate?! Seus pais?!
__Não... Eu não sei o que ele quer comigo.
__Acho que eu sei. __Hugo sorri com malícia, umedecendo
seus lábios com sua língua ferina. __E ele conseguiu?!
__Não! __Exclamo estupefata com a direção que a conversa
está tomando.__ Ele disse que... Alguém o mandou matar minha família. Mas... Eu
não acredito.
__Você acredita em que então?! __Gritou Augusto, não mais
se contendo, recebendo um olhar desaprovador de Hugo.
__Eu não sei. Deve ser um seqüestro... Ou ele quis... Que
eu sofresse por não ter morrido com eles... Ou foi o destino... __Digo
fatigada. __Que queria que eu entregasse à polícia... O assassino dos meus
pais... Antes de me juntar a eles... Por não ter feito isso... Quando pude.
__O destino?! __Exclama Hugo, sorrindo abertamente.
__Deve ter sido mesmo. Mas se você mesma não sabe em que acreditar, imagine
nós!
__Mas... Foi Dan que os matou... Isso eu sei. __Continuo
desesperançada.
__Será?! Você não está nos ajudando, Manuela. __Hugo não
parece mais tão simpático, na verdade, parece irritado. __ Onde estão os seus
pais?! __Vocifera Hugo, me fazendo encolher contra o meu assento, quando ele se
levanta subitamente, derrubando sua cadeira ao chão, e se segurando nas bordas
da mesa.
__Eles estão mortos! __Grito, quando uma descarga de
adrenalina me percorre o corpo em pânico. Minha mente se desperta e posso ver
que nada está como o planejado. Na verdade, parece que eu saí de um pesadelo
para outro ainda maior.
__E você também deveria estar! __Ouço Augusto gritar,
antes de me esbofetear o rosto. Sinto meu rosto queimar, as lágrimas que tentam
lavá-lo não aliviam a dor, mas me confortam. Eu me abraço ás minhas pernas,
tentando me proteger, e pedindo para que tudo isso seja rápido. Se eles
planejam me matar, que sejam breves. Todavia, meu pedido não é atingido.
__Não se preocupe com o Augusto. __Recomeça Hugo,
aproximando-se de mim e retirando meu cabelo do meu rosto. Ele sorri, enquanto
encara meus olhos assustados, mas posso ver seu olhar frio e cruel. __Ele está
estressado. Nós só estávamos percorrendo a cidade. Imagine nossa surpresa
quando a vimos correndo pelas calçadas da cidade. Sangrando e parecendo
abatida, mas viva. O Augusto não ficou muito feliz. Mas nós não queremos vê-lo
triste, né? Ou mesmo estressado, pois já sabemos como ele fica violento. Você
só precisa dizer onde estão seus pais. Fácil, não?!
__Eles... Estão... Mortos... __Respondo entre lágrimas,
sentindo o gosto de sangue nos meus lábios.
Hugo
ainda sorri enquanto estapeia meu rosto repetidas vezes, e diz:
__O
que você disse mesmo?! Eu não ouvi. Essa sala é tão barulhenta. Estão fora do
país?!
Meu rosto arde, no entanto meu coração dói mais. Uma
angústia invade meu peito, mas agradeço por meus pais não terem passado por
isso. Eu não faço idéia de quem pode ter querido matá-los, e essa idéia já não
parece mais tão absurda para mim. Dan estava certo, alguém o pagara para matar
meus pais, e eu sou grata por ele ter feito isso logo, antes que eles
precisassem passar por isso.
Hugo ainda encara meus olhos. Eu sou uma presa fácil.
Sinto-me a pessoa mais tola do mundo. No final da contas, Dan me protegia. Á
sua maneira, mas não estivera mentindo. Eu espero que ele não me odeie, e
entenda meus motivos. Talvez ele tenha salvado minha vida, achando que ela
valeria a pena, mas eu não merecia. É
isso o que eu mereço.
Então eu não sobrevivera para entregar Dan à polícia,
afinal. E sim para morrer lentamente. É essa minha punição. Morrer em vão.
Ótimo. Vamos entrar no jogo.
__Estão... Mortos... __Respondo, agradecendo quando o
torpor volta a obscurecer minha mente. Talvez isso torne minha morte mais fácil
e rápida, e menos dolorosa, não que a dor importe. Só não quero dá-los o prazer
de me ver gritar e chorar.
Tanto
que mal sinto quando, mal acabando de ter respondido a pergunta, Augusto vem
como um tufão para cima de mim, levantando-me num impulso, sem que meus pés
encostem o chão, sacudindo-me e falando coisas sem sentido. Eu encaro seus
olhos sem entender o que ele está fazendo, e ele me lança contra a parede, na
qual me choco, deslizando para o chão.
Vejo
Hugo repreender Augusto, dizendo:
__Não
podemos matá-la. Precisamos de respostas. Precisamos dela viva! É melhor você
se controlar! __Conclui, empurrando Augusto, que levanta uma das cadeiras e se
senta, observando a cena em silêncio.
Hugo senta-se à minha frente, no chão. Seu sorriso
irônico permanece em seus lábios. Eu me encolho contra a parede, fitando seu
olhar gélido. Sinto minha respiração superficial e acelerada movimentar meu
corpo involuntariamente. Confusa, minha mente não consegue associar essa cena
com meus pais. Parece que mergulhei no mundo dos pesadelos, e minha vida
passada agora faz parte de um mundo distante, de sonhos e alegrias
completamente irreais.
__Você não está ajudando. __Diz, enquanto se aproxima de
mim. Ele segura o meu pé machucado e o puxa para si com delicadeza, colocando-o
em seu colo. Não faço resistência. Uma sensação ruim sobe do meu peito até
minha cabeça, escurecendo minha vista. Pequenos pontos de luz brincam diante
dos meus olhos, e eles se intensificam num objeto que vejo Hugo segurar, o qual
percebo ser uma faca.
Eu não entendo, e procuro o rosto de Augusto, esperando
que ele me explique, e vejo um brilho feroz em seus olhos, acompanhado de um
sorriso torto em seus lábios. Volto meu olhar para Hugo, a sala volta a ficar
mais clara, e ele sorri:
__Acho que não começamos bem. Vamos começar tudo de novo.
Eu pergunto, e você responde. Sem mentiras, sem jogos, e sem violência.
Eu não respondo, mas ele prossegue.
__Onde estão os seus pais?!
__...
__Você está me ouvindo?! __Indaga, segurando meu rosto
cuidadosamente. __Onde estão os seus pais?!
__Eles... __Digo, esforçando-me para que minha boca me
obedeça. __Estão... Mortos.
__Resposta errada. __ Sorri, parecendo decepcionado. Eu
tento sorrir de volta, mas em vez de meus lábios obedecerem ao meu comando,
eles libertam um grito de dor desesperado quando sinto Hugo perfurar com a
ponta da faca o meu ferimento.
O meu corpo se contorce em dor, num impulso involuntário
tento recolher meu pé, numa tentativa de protegê-lo, mas percebo a mão firme de
Hugo prendendo-o. Meu rosto está úmido pelas lágrimas e pelas gotículas de suor
frio que surgem. Ouço-me chorar gemendo, contra a minha vontade. Como uma
criança apavorada, dou um grito assustador, quando ele continua o seu trabalho,
perfurando outro ponto do meu pé.
__Não! Pára! Por favor! Pára! __Escuto minha voz
enfraquecida e entrecortada implorar. __O que você quer?!
__Essa é uma ótima pergunta. __Comenta, limpando a ponta
da faca, banhada em sangue, no pano que antes enrolava meu pé. __ E melhor
ainda a resposta. Entretanto, você já a conhece.
__É só o que eu sei. __Choramingo para minha vergonha.
__Que eles estão mor... __Porém sou interrompida, pelo ataque súbito de fúria
de Augusto, que se levanta da cadeira, e se aproxima do meu rosto, segurando-o
com força.
__Você já disse isso. Eu não agüento mais, Hugo. Vamos
acabar logo com ela, e pegar nosso dinheiro.
Meu corpo relaxa em gozo. Finalmente, o que eu mais
espero. Eu sorrio diante da perspectiva de reencontrar meus pais. Peço a Deus
que perdoe meus pecados e que me permita ir para o céu, encontrá-los. Contudo,
antes que Deus me abra as portas do paraíso, escuto gritos na ante-sala,
rapidamente silenciados.
Não sou apenas eu que percebo a movimentação. Augusto
parece assustado, e Hugo se levanta rapidamente, encarando a porta assombrado,
como se a qualquer momento por ela fosse entrar o monstro de seus piores
pesadelos. Eles pegam suas armas, num movimento instintivo, tão rapidamente que
mal sei de onde as tiraram, e as apontam para a porta.
O silêncio é apavorante. E me angustio por meus pedidos
terem sido atrapalhados por aquela estranha interrupção. Ouço apenas o som da
minha respiração ofegante, e a tensão dos meus algozes é perceptível. Posso até
mesmo vê-los suarem frio em seus ternos caros, e não me impeço de sorrir.
Não faço idéia do que eles imaginam que possa surgir por
essa porta. No entanto, independente do
que seja, fico grata por aquela última vingança. Ver meus torturadores sofrerem
como eu sofrera é reconfortante. Não me importo com o que essa repentina ameaça
poderá fazer comigo, apenas desejo que ela não prolongue essa demora, e que
seja rápida e prática nessa execução.
Esforço-me para me manter alerta, lutando contra o torpor
que me invade, pois de algum modo, não quero perder nenhum detalhe. E antes que
eu possa piscar, vejo a porta que antes parecera resistente se abrir num
milissegundo, apenas com um chute certeiro de um homem desconhecido.
Ele é alvejado pelos dois homens que permanecem em suas
posições. O corpo do homem é então lançado contra eles, fazendo Hugo cair
assustado próximo a mim. Ainda deitado, ele tenta recarregar sua arma, e no
outro segundo, o vejo permanecer imóvel no chão, derramando sangue pela boca.
Antes que eu possa me encolher de volta à parede, vejo
Augusto cair da mesma forma, inerte, e encontro o olhar frio de Dan. Eu estava
mesmo errada. Tenho a sensação de que esse olhar frio não me abandonará tão
cedo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário