Sinto
a mão de Dan contra a minha boca. O meu grito de pavor é abafado, e talvez seja
por isso que a palma de sua mão esteja tão quente, quase queimando os meus
lábios, embora a sensação não seja ruim. Sinto o seu corpo enrijecido contra o
meu, a sua respiração ardente arrepia os pêlos da minha nuca, embora eu não
sinta frio.
Sua
outra mão está na altura da minha cintura. Ela segura uma arma num ângulo de
90º. Percebo que nunca havia visto uma arma tão de perto, eu diria que ela é
quase bonita. Preta e com um ar moderno, e com detalhes prateados que brilham
com as luzes do salão. Sinto que se eu me mexesse um pouco poderia até tocá-la,
mas não consigo, eu não posso sequer me mover.
Paralisada
no abraço mortal de Dan a morte me parece certa, embora o seu abraço pareça
surpreendentemente protetor. Só me resta olhar para frente, pois a sua mão
ainda segura na minha boca me impede qualquer leve movimento da cabeça, e me
deparo com outra arma. Era estranho que na primeira vez que eu via de perto tal
objeto, ele já viesse em dobro.
Mas
reparo que a outra arma está apontada para mim, e imagino que no meu corpo haja
o mesmo ponto de luz vermelho que há no corpo dele, apesar de ele ainda não ter
reparado. O olhar dele parece feroz e ao mesmo tempo satisfeito por estar no
controle da situação, até perceber seu engano letal.
Como
as emoções são fugazes, e a própria vida. Sinto o desespero surgir em seus
olhos, e o percebo como um reflexo do meu próprio temor. Parecemos dois
gladiadores numa arena, sabendo que apenas um sairá vivo do embate. Eu deveria
ter me entregue. Não teria chance contra ele. E ele sabia disso quando entrou
na briga. No entanto, Dan, ainda que parecesse uma ameaça, agora me dava uma
estranha sensação de segurança.
Vejo
seus olhos assustados. Ele ainda segura sua arma contra mim, entretanto parece
começar a tremer. Ele está paralisado, assim como eu. A iminência da morte pode
dar forças sobre-humanas às pessoas. Ou pode paralisá-las. Não as permitindo
mexer ao menos um músculo, fazer qualquer coisa, a não ser assistir admirada e
silenciosamente seu próprio fim.
Seus
dedos tremem no gatilho, e me pergunto quando aquilo acabará, até que Dan, num
movimento perfeito dispara um tiro contra a vida do meu duelista. A peça de
metal perfura-lhe a carne e queima-lhe o peito. Os tecidos do seu coração se
rompem e flamejam dando passagem à bala que se aloja em seu cerne. Posso quase
ouvir seu grito de dor que não chega à sua boca, enquanto suas pernas pendem, e
seus joelhos se apóiam no chão, mas não suportam seu próprio peso, permitindo
que seu corpo vá de encontro ao solo do qual nunca mais sairá.
A
mão de Dan se afrouxa no meu rosto e sem me olhar ele me ordena que vá para o
banheiro. Impeço-me de pedir que ele não me abandone, que estou com medo e não
quero ficar sozinha. Mas não tenho sucesso, e ouço minha voz pedindo que ele
fique ao mesmo tempo em que acordo no meu quarto, encharcada de suor.
Abraço-me
ao meu lençol que também está molhado assim como minha camisola, e me pergunto
como posso ter suado mesmo sentindo tanto frio. Ligo o meu abajur e percebo que
está tudo em seu devido lugar. É estranho que no meu sonho tudo tenha parecido
tão mais real e com tantos mais detalhes que na própria noite em que tudo
aconteceu, apesar de que após uma semana, aquela noite tornava-se cada vez mais
distante e irreal, e eu começava na medida do possível até a esquecê-la. Pelo
menos era o que eu pensava, até agora.
Dirijo-me
ao banheiro, lavo meu rosto e encaro meu reflexo. Minha face cansada e meus
olhos assustados parecem-me estranhamente familiares, e Dan volta em minha
mente com ainda mais força. Eu não o havia esquecido por completo, ele só me
parecia um passado distante e esquecido. Ou pelo menos que eu tentara esquecer.
Com
a água morna do chuveiro escorrendo pelo meu corpo e com o doce cheiro do meu
sabonete a calma começa a retornar. Com os cabelos molhados presos numa toalha,
ligo a luz do meu quarto e percebo que não conseguirei mais dormir.
É
o mesmo quarto em que eu vivera toda a minha vida. Ainda com as paredes
cor-de-rosa, renovadas a cada ano, combinando com o piso e a mobília brancos.
Com o tempo apenas o guarda-roupa aumentara de tamanho para comportar as roupas
e sapatos que se avolumavam, assim como a cama. No entanto ainda guardando a
mesma essência aconchegante que minha mãe sempre providenciara.
Percebo-me
fitando uma foto dos meus pais com uma bonita criança de olhos e cabelos
castanhos sorrindo, apesar da falta de um dos seus dentes incisivos. Minha mãe,
com seus cabelos castanhos e cacheados soltos e bagunçados pelo vento, abraçada
a um belo e alto rapaz de cabelos muito escuros esvoaçantes.
Mal
posso descrever o desespero da minha mãe ao acordar no domingo, o dia seguinte
à minha festa de aniversário, e ser surpreendida com as notícias da festa, com lágrimas
brotando dos seus olhos ao me abraçar em aflição. Ela culpou a todos, à
segurança, ao meu pai, e até a mim mesma por ter insistido tanto em ter uma
festa longe de casa, mas logo se desculpou, chorando ainda mais e me abraçando
novamente.
Meu
pai tentou acalmá-la, sem sucesso, até minha mãe se distrair reclamando com as
empregadas do almoço que ainda não fora feito, dos móveis que não foram lustrados
e do chão que não fora encerado. Era estranho que as empregadas parecessem
assustadas e até distraídas, no entanto assim que começaram as reclamações,
retornaram a seu trabalho habitual.
O
almoço foi calmo em comparação à manhã, e o assunto só fora mencionado por meu
pai, que rompendo com seu costume, atendeu o celular à mesa e nos informou de
que as investigações haviam se acalmado, que nós não seríamos mais importunados
com perguntas pela polícia, e agora acreditavam o assassino se tratar de algum
adolescente que arranjara uma arma e decidira fazer uma brincadeira com
trágicas conseqüências. Não fora identificada a família da vítima, portanto a
investigação não seria prorrogada, devendo-se encerrá-la ou apenas arquivá-la
ainda no decorrer da semana.
Não
sabia se me sentia aliviada com essa notícia e por perceber que nos jornais
impressos e televisivos pouca menção fora feita ao episódio, ou culpada. Eu não
tivera coragem de confessar a ninguém o que realmente acontecera, e por isso a
justiça não seria feita. Uma vida fora interrompida e o culpado estava solto,
outras pessoas poderiam morrer por suas mãos. Contudo ele salvara a minha vida,
pelo menos era o que eu acreditava. Seria quase uma legítima defesa, uma vez
que eu não saberia me defender, e ele o fez por mim.
No
entanto, por que ele estava armado? Ele previa que aquilo aconteceria? Talvez
ele temesse por sua segurança, e andasse armado para se defender. Ou o seu
passatempo era matar pessoas. Por mais tempo que eu me fazia tais perguntas,
mais qualquer oportunidade de dar o meu depoimento se esvaía. A investigação já
se concluía de uma maneira negligente, todavia todos pareciam satisfeitos com o
resultado da perícia, apesar de me sentir culpada por ele não ter nem ao menos uma
família para chorar sua partida. E mesmo que eu dissesse qualquer coisa,
haveria provas?
Bárbara,
Martha e Luana vieram me visitar na mesma tarde para conversarmos e tomarmos
banho de piscina. Eu não tinha a mínima vontade devido às circunstâncias,
contudo ao ver o sorriso de minha mãe recepcionando as meninas e pedindo-lhe
que aproveitassem o sol e a piscina e esquecessem qualquer problema, decidi me
esforçar para mostrar que estava bem. E assim ela também estaria, como pude comprovar
ao vê-la satisfeita consigo mesma enquanto eu subia as escadas para colocar o
meu biquíni.
Elas
pouco comentaram o assunto, até mesmo Bárbara. Pois estavam extremamente
interessadas no meu namoro com Marcelo. Até mesmo Luana não pôde conter um grito
de agitação quando disse que estávamos mesmo namorando. Martha estava extremamente
orgulhosa de si mesma pelo absoluto sucesso de seu plano, eu não pude deixar de
sorrir e compartilhar um pouco da animação das três, e nem mesmo corrigi Martha
de que a idéia fora de Esther.
Ainda
tentei perguntar se elas haviam me observado enquanto conversara com Dan, e se
haviam visto alguma coisa, Martha negou, confessando que não perdera de vista
Bianca e Alexandre, e Luana não prestara atenção por estar entretida numa
conversa com Thaís sobre a proximidade do vestibular, e Bárbara logo após dizer
que ficara tentando conversar com Esther sobre como arranjar um namorado,
percebeu o furo e exclamou com os olhos arregalados:
__Por
quê?! Havia algo para ser visto?! Vocês se beijaram, Manu?! __Gritou, chamando
imediatamente a atenção de Martha e Luana que haviam mergulhado novamente na
piscina.
__Não!
__Gritei de volta, não sabendo se de susto por Bárbara ter percebido a deixa da
minha pergunta, embora não adivinhando a situação que perdera, ou pela
impossibilidade de sua hipótese, embora ela não me parecesse ruim em absoluto.
__Não. Nós só conversamos. Eu só queria
saber o que vocês acharam dele... __Gaguejei.
__Eu
só reparei que ele era bonito. Ele vai ficar quanto tempo na cidade?
__Perguntou Luana com receio, com sua pele clara subitamente tornando-se
rosada.
__Lu!
__Exclamou Martha estupefata, sorrindo da amiga que ruborizava ainda mais.
__Você gostou dele?! Hum... Que evolução!
__O
que foi?! __Perguntou Luana um pouco mais calma, alisando distraidamente os
cabelos escuros molhados, evitando o olhar surpreso de Martha. __Não foi só a
Bárbara que conversou com a Esther ontem. Ela disse que eu tenho que me
arriscar mais.
__Hum...__Prosseguiu
Martha, amarrando seus cabelos louros curtos tingidos, enquanto se espreguiçava
numa das cadeiras que rodeavam a larga piscina, aproveitando o sol da tarde.__Ele
parecia bem bonito mesmo. Mas com um ar de mais velho. Não faz muito meu tipo.
Porém, acho que a Manu consegue para você o telefone dele, não?
__Eu
não tenho. Eu nem pedi. Não vi motivo. __Respondi rapidamente surpreendida por
minha irritação súbita.
__É.
Ele era bonito, mas com o Marcelo na jogada devia ser difícil pensar em outro
cara. __Comentou Bárbara com desdém. __E ele parecia meio sinistro também.
__Falando
nele. __Sussurrou Martha lançando um olhar atrás de mim, e por um instante
imaginei Dan na minha casa. Não pude evitar sentir um arrepio percorrendo meu
corpo, embora o dia estivesse completamente ensolarado e quente. Vencendo a
paralisia que me dominava, virei-me para a direção em que as três meninas
olhavam, deparando-me com Marcelo, numa camiseta regata branca que nos dava uma
perfeita visão de seu peito definido pelas horas de academia e natação, e um
calção preto folgado, com uma sandália havaiana.
Eu
senti um alívio ao vê-lo se aproximar, embora um pouco de frustração me
atingisse. Ele sorriu ao me distinguir entre as garotas, e tirou os óculos
escuros quando me levantei. Ele me observou dos pés a cabeça, e timidamente
percebi que estava apenas de biquíni, sem nem ao menos uma canga. Marcelo não
pareceu achar isso ruim, e me abraçando, embora eu estivesse ainda molhada do
mergulho que dera há alguns minutos, me beijou deixando as meninas estupefatas.
Ainda
me tendo em seus braços, embora tivesse parado de me beijar, deixando-me sem
fôlego, ele recolocou os óculos escuros e cumprimentou as meninas com um
sorriso que fez Martha voltar para a piscina, talvez tentando se reprimir para
não atacá-lo, como eu sei que ela faria se não fosse eu que estivesse com ele.
Minha
mãe chegou logo em seguida acompanhada de uma das empregadas que trazia uma
pesada bandeja com sucos de frutas e sanduíches naturais. Ela sorriu e disse
que fora o máximo de saudável que conseguira achar, uma vez que nós garotas não
deveríamos abusar dos alimentos industrializados que nos forçam a comer em
todos os lugares. E então ela percebeu Marcelo sentado ao meu lado, mas se seu
sorriso serve de indicativo, ela não pareceu se incomodar por ele estar com seu
braço rodeando minha cintura.
Marcelo
não demorou em se apresentar beijando cavalheiramente a mão da minha mãe, cujos
olhos brilharam do que parecia ser felicidade e orgulho por sua filha ter
conseguido tal garoto, como ela não deixaria de comentar várias vezes no mesmo
dia.
As
meninas foram embora no final da tarde, não antes de terem uma privilegiada
visão do corpo do meu namorado, quando logo após minha mãe ter se despedido e
entrado na casa, e o calor ficar quase insuportável, Marcelo pediu licença e
tirou sua roupa, trajando apenas uma sunga preta, que contrastava com sua pele
clara, mas de um modo extremamente saudável, devo comentar.
Marcelo,
convidado para o jantar por minha mãe, não pareceu nem um pouco desconfortável
como eu acredito que ficaria ao conhecer seus pais. O jantar fora organizado
apenas no fim da tarde, mas mesmo assim, graças ao perfeccionismo absoluto da
minha mãe, no início da noite, estávamos os quatro, incluindo meu pai que
acabara de chegar do escritório no qual passara a tarde, sendo servidos de um
saboroso jantar que consistia em três pratos e variadas sobremesas.
As
conversas se direcionaram, de uma forma que espero não ter parecido
investigativa ou interrogativa, a Marcelo, sua família, planos para o futuro,
preferências, hobbies. E embora eu pudesse perceber o aperto de sua mão na
minha, por debaixo da mesa, mais tenso, suas respostas pareciam agradar
imensamente minha mãe, que sorria e acenava a cabeça em concordância, e não
desagradar a meu pai.
Olhando
para aquela reunião familiar, a cena da noite anterior parecia irreal, e era
quase difícil acreditar que ela ocorrera. E decidi que eu não tinha nada a ver
com o que ocorrera. Fora uma triste coincidência que aquela morte trágica
acontecera justamente na minha festa de aniversário.
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