domingo, 12 de agosto de 2012

Capítulo 6 - Fim


             A luz do sol entra por entre as persianas da janela do meu quarto, e parece que acordo de um sonho longo e perturbador, daqueles que você sabe que foi terrível, mas o qual não consegue recordar em detalhes.

            Minha cabeça está mais leve, e meu corpo não parece mais tão dolorido. Eu me contorço, numa tentativa de afastar o sono, enquanto me envolvo ainda mais nos lençóis macios. Encaro o teto do quarto, e não encontro as estrelas, talvez seja a claridade que entra pela janela que as impede de brilhar, mas tudo me vem em flashes de memória.

            De alguma maneira as únicas coisas que vêm a minha mente são Dan, meu quarto, fogo, carro, seringa, Dan, quarto de motel, Dan, banheira, seringa, carro, Dan, seringa, Dan. Sinto minha cabeça girar, mas não mais por estar dopada, e sim por perceber que nada foi um sonho, apesar de estar tudo tão confuso.

            Eu me levanto, sem saber ao certo com o que irei deparar. Ainda estou usando o meu vestido e encontro minhas sandálias à beira da cama. Olho-me no espelho, e não resisto ao impulso de arrumar o cabelo. Procuro ao redor do quarto, não tenho bolsa nem nada, nem mesmo vejo meu pijama ao redor. Abro as gavetas da cômoda e elas estão vazias. Nem um único pente.

            Passando a mão pelos cabelos, que desobedecem e continuam revoltos, e controlando o mal-estar que ainda sinto, não sei se pelas drogas que ainda circulam em meu organismo, ou pelo receio do que estarei para descobrir, abro a porta, sem maior adiamento, deparando-me com o silêncio. A casa está deserta, e trancada. Ainda tonta percorro repetidamente cada possível saída, tentando conter o pânico, o que se torna cada vez mais difícil. Todas as janelas têm tranca, e a porta não se meche quando giro a maçaneta e nem mesmo quando me bato contra ela em desespero.

            Não sei se a presença de Dan seria um consolo, mas a sensação de estar sozinha numa casa, que mesmo que eu gritasse, nenhum dos vizinhos me ouviria me apavora. E eu nem ao menos sei onde estou, ou que tipo de vizinho encontraria.

            Desisto de bater na porta e me concentro em reconhecer novamente o território, uma sala-cozinha, um banheiro, no qual tento me recuperar lavando o rosto, sem sucesso, achando que talvez assim eu consiga acordar desse estranho pesadelo. Vejo ainda os dois quartos, embora o que estivera entreaberto na noite anterior, agora esteja trancado. A casa é humilde e há outra porta no fim do corredor que também está trancada.

            Vasculhando a cozinha, não encontro qualquer objeto que poderia obrigar Dan a falar, nenhuma faca, ou objeto pontiagudo. Embora eu imagine que ele sorriria se me visse tentar ameaçá-lo.

Não encontro um único relógio, um calendário, qualquer indicativo de tempo e muito menos de onde eu estou, até que encontro a televisão. Eu a ligo e parece que a vida continua normalmente, programas de desenho animado, de culinária e variedades, e finalmente um telejornal. E então sinto meu corpo tremer sob a perspectiva de ver qualquer referência ao que acontecera.

            A jornalista começa dizendo a data e o horário. Já se aproxima do meio-dia, é segunda-feira, e eu estou a muitos quilômetros de casa. Faz três dias desde que eu tive consciência de qualquer coisa e as matérias se misturam sobre violência, corrupção, políticos, assassinatos, guerra do tráfico.

            Quando a mesma foto que eu mantinha no porta-retrato do meu quarto aparece na tela, junto com a âncora do jornal que começa a falar “Ainda não se sabe a causa do incêndio que causou a morte da família de Agenor Gonçalves, importante empresário do ramo de investimentos...”, eu me levanto aterrorizada. No entanto, antes que ela possa terminar sua fala e prosseguir sua matéria, sinto meu corpo tombar ao chão, tudo fica escuro, e desejo que nunca mais fique claro novamente. É o fim, e não há nada pior do que sobreviver a ele.



            Dan sacode o meu corpo parecendo preocupado. Ele parece mais aliviado quando abro os olhos. Sinto cheiro de comida, e as imagens ainda me parecem distorcidas, quando ele tenta me levantar e diz:

            __Já era para o efeito dos medicamentos terem passado. O que houve? Você está bem?

            Eu não consigo entender muito bem o que está acontecendo, assim como ele. Contudo, quando nós simultaneamente olhamos para a televisão ainda ligada no telejornal, mas falando de outra tragédia, imediatamente percebemos o que havia acontecido.

            Levanto-me num ímpeto de fúria e me jogo contra ele:

__O que você fez?! __Grito enquanto me debato contra ele, como fizera contra a porta, batendo em seu peito. __O que você fez?! __Continuo a gritar desesperada. As lágrimas jorram dos meus olhos, eu já me sinto sem forças, mas não posso parar de atacá-lo.

Dan não se defende, nem ao menos segura os meus braços, ele apenas se afasta impassível enquanto continuo a gritar, e o seu olhar antes preocupado parece apenas cansado:

__O que você fez com eles?! Você os matou?! Você é um assassino! Seu monstro! Seu doente! Assassino! Por que você fez isso?! Por que você não me matou também?! Por que você não deixou que aquele homem me matasse no dia do meu aniversário, já que ia fazer isso mesmo? Por que você fez isso?! Por que você fez isso?!O que você quer de mim?! Responde!

Eu me sinto enfraquecer, e derrotada me encosto a seu peito e começo a chorar soluçando, me apoiando nele para não cair novamente. Dan nem ao menos toca em mim, e me vejo ridicularizada. Afasto-me, encarando o seu rosto que não demonstra reação, parecendo quase decepcionado.

__O que você quer de mim?! Eu quero ir embora. Eu quero ir para minha casa. Eu quero os meus pais.

__Não sei se você viu no jornal, mas você não pode ter nada disso de volta. __Começa, olhando-me nos olhos, mas sem demonstrar o mínimo de empatia. __ Sua casa e seus pais não existem mais. O fogo consumiu tudo.

Eu continuo a encará-lo, enquanto reprimo espasmos de dor que poderiam contorcer meu corpo. As lágrimas são mais difíceis de evitar, e agora posso senti-las escorrerem pelo meu rosto.  Meus olhos ardem, e meu peito parece implodir. A dor que me aflige seria capaz de me matar, se não fosse o ódio que me faz querer vingança.

__Por que você fez isso?! Como você pode me dizer isso com tanta calma?! Por que você não me matou também?! O que você quer de mim?!

__São muitas perguntas. Você deveria se alimentar. Não come nada há três dias. __Diz ele, enquanto se vira e se dirige à porta. __Você não me denunciou para a polícia. Não salvou minha vida, mas estou grato. Achei que deveria fazer o mesmo por você, e retribuí o favor. E mesmo que você pareça agora arrependida, não posso ignorar o que fez por mim.

Ele fecha a porta, e dá uma volta na fechadura. Fico estupefata encarando o lugar por onde ele saíra. Então no fim das contas tudo era culpa minha. Eu deixara de entregar para a polícia um assassino, que agora matara meus pais. É Homem-Aranha demais para mim. Pego o prato de comida que está em cima do balcão da cozinha e o jogo com toda a minha força contra a porta. Ele se espatifa pelo chão, mas não chega nem perto do que eu tenho vontade de fazer comigo mesma.



Eu já havia eliminado a idéia de autoflagelação para me punir pelo que eu fizera. E como minha mãe mesmo dissera, a vida é feita de desafios, e por mais que eles pareçam difíceis ou até impossíveis de contornar e enfrentar, é só ter fé e calma que tudo ficará bem. Isso me parece impossível, mas é a única coisa que me faz querer continuar a viver.

Eu não sei mais porque não entregara Dan à polícia, mas sei que foi com as melhores intenções. E se a morte dos meus pais é uma punição por ter feito o que fiz, eu devo pagá-la, e não fugir dela, com a morte. 

Abraçada com o travesseiro, na cama e na casa de um estranho, enquanto o brilho da lua é a única luz que entra nesse quarto, tento me dar motivos a continuar viva.

Em dois meses, por duas ocasiões eu tivera o risco de ser morta, e Dan me salvara nas duas, por motivos que parecem obscuros para mim. Entretanto, deve haver uma razão, que talvez nem ele saiba. A morte dos meus pais não pode ter sido em vão. E muito menos minha sobrevivência.

Eu devo descobrir por que tudo aconteceu, mas a companhia de Dan não parece a mais segura. A polícia precisa saber que eu estou viva, e possivelmente seqüestrada. Só não consigo imaginar de quem Dan planeja receber o resgate.

Ouço o barulho da porta sendo aberta, e sendo arranhada pelos cacos de vidro espalhados pelo chão. Deito-me rapidamente, e finjo estar dormindo. Todavia Dan nem mesmo abre a porta do meu quarto para verificar se eu havia fugido ou mesmo estava viva. Talvez por confiar na segurança do meu claustro, o que deixa minha possibilidade de fuga ainda mais remota, ou ele simplesmente não se importa mais. E não sei qual das duas hipóteses me é mais dolorosa.

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