quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Capítulo 8 - Fuga


Eu estou correndo literalmente contra o tempo. Eu não sei onde estou, e muito menos para onde estou indo, apenas continuo a correr. É frustrante que eu tenha planejado por tanto tempo essa fuga e agora não saiba aonde ir.

Os primeiros raios do sol que começa a subir pelo céu iluminam a rua pela qual permaneço correndo. É uma avenida larga, mas poucos carros a percorrem, e há poucas pessoas pelas calçadas, apenas alguns corredores. Talvez eles pensem que eu esteja fazendo o mesmo, me exercitando para me manter saudável. O que não deixa de ser verdade, uma vez que estou correndo para salvar a minha vida.

As lojas ainda estão fechadas, os postes ainda acesos, e posso ver a lua sendo coberta pelas nuvens. Eu continuo sem saber aonde ir. Não é possível que não haja um único estabelecimento policial nessa cidade. Ainda penso em perguntar a uma das poucas pessoas que passam por mim, mas elas parecem muito concentradas na música de seus Ipods.

Meus músculos começam a tremer e meu fôlego a faltar, contudo qualquer parada para descanso poderá custar minha liberdade novamente, e depois de tudo o que passei não posso desistir.

Sinto um suor frio percorrer meu corpo. Não há um único táxi passando pela rua, e eu nem ao menos teria dinheiro para pagá-lo. Uma pontada de dor me aflige. Sinto meu pé direito umedecer dentro da minha sandália. Olho para ele, ainda correndo, quando percebo estar deixando um rastro de sangue pelo caminho. Ótimo. Agora Dan reconhecerá o meu percurso.

A dor aumenta, mas eu não me importo, e acelero o passo, me contendo de gritar de dor, quando sinto meu pé rasgar ainda mais. Minha vista escurece, e a paisagem à minha frente adquire uma forma estranha. Minha cabeça parece desnorteada, e uma vertigem quase me faz cair ao chão, mas não diminuo a corrida.

Quando a dor se torna ainda mais insuportável, as lágrimas rolam pela minha face. Isso é uma boa penitência. Eu devo isso aos meus pais. Em sua memória. Eles não serão esquecidos. Seu assassino será punido pela justiça, e eles poderão descansar em paz, nem que custe a minha vida, a qual já não vale muito.

Passo a mão pelo meu rosto, tentando enxergar melhor onde estou, e limpando as lágrimas que se confundem com o suor frio que umedece meu rosto. Eu mal consigo me manter de pé. A minha sandália começa a escorregar do meu pé encharcado de sangue, isso me faz correr ainda mais.

Não. Eu não posso morrer assim. Está doendo bastante, eu me sinto cansada e tonta. Meu raciocínio está lento, e é com esforço que mantenho minha marcha. No entanto, de uma forma ou de outra eu chegarei à polícia e entregarei Dan. E então eu poderei morrer em paz comigo mesma, por ter conseguido o perdão dos meus pais.

Agora tudo se encaixa. Essas duas semanas que eu vivera após suas mortes fora apenas com esse objetivo. Eu conseguirei entregar o assassino dos meus pais e poderei me juntar a eles para sempre. Tudo parece claro. Por isso eu não morrera com eles. Se isso tivesse acontecido, Dan nunca seria pego. E eu precisava pagar minha penitência por não tê-lo entregue antes, no meu aniversário, quando tive a oportunidade.

Essa idéia me conforta. Sinto uma paz invadir minha alma. A paz de dever cumprido, ou talvez seja a obnubilação da minha consciência após perder tanto sangue. Contudo, tento me manter alerta. Meu dever está longe de ser cumprido, eu ainda não encontrara um departamento policial. Mesmo assim, a parte mais difícil já passara. Fugir de Dan havia sido mais difícil do que eu sequer imaginara, e se chegar à polícia agora for mais difícil, tenho dúvidas se conseguirei.

Era realmente impossível fugir da casa em que Dan me mantinha. Na semana que se seguira ao dia que eu recuperara minha consciência, tudo se manteve igual. A convivência com ele era mínima. Eu parei de fazer perguntas, talvez por medo de saber as respostas, uma vez que nenhuma das que ele me dera era a esperada, e só me confundiam.

Eu não pude continuar a fazê-las, pois Dan insistia em tentar me convencer de que alguém lhe pagara para matar minha família. Isso era impossível. Ele estava tirando sua culpa, e ainda tentando ser um herói. No entanto, não me convenceu.

Eu não o perdoaria, e ele pagaria pela morte dos meus pais. Foi ele que de alguma forma, incendiara minha casa, não importando se alguém o pagara, o que parecia improvável. Suas histórias não me desviariam do meu objetivo.

Refugiei-me em meu quarto tentando encontrar uma saída. Dan passava a maior parte do tempo em seu quarto, e passava as tardes fora. Eu aproveitava para reconhecer a área. As janelas eram de vidro, no entanto sua espessura o deixava quase inquebrável e sua estrutura era de ferro. A porta da frente era da mesma forma. E sempre se mantinha trancada, assim como a porta do quarto de Dan.

Não havia como fugir. A não ser que ele me permitisse sair da casa de algum modo. Comecei a me aventurar pela sala, no entanto Dan parou de freqüentá-la. Era difícil conquistar sua confiança tentando ser simpática. Ele não parecia gostar de conversar e eu não queria forçar. E seria muito suspeito ser subitamente amável.

A chantagem era uma boa forma. Pelo menos eu pensava. Contudo mesmo que eu insistisse em sair para almoçar, fazer compras com ele, prometendo não fazer nenhuma besteira, pois acreditava e era grata a ele, permaneci presa.

Os filmes de ação que eu relembrava não me ajudavam em suas fugas mirabolantes, e minha criatividade estava enfraquecida. Os dias se passavam, como o tique-taque de uma bomba-relógio, terça, quarta, quinta, sexta-feira, sábado, domingo, segunda-feira novamente. Até quando aquilo continuaria?! Eu não estava desesperada, mas minha vida permanecia numa rotina angustiante.

Desde a conversa com Dan eu não tinha mais pesadelos. Na verdade, não sonhava mais. E como uma cobrança dos meus pais, na madrugada de terça-feira, impacientes pela minha demora, voltei ao quarto deles.

O mesmo sonho. Ou melhor, o mesmo pesadelo. As cortinas se despedaçavam consumidas pelo fogo, eu permanecia inerte e aterrorizada observando a cena. Dan desaparecia e eu encontrava o olhar dos meus pais, o mesmo olhar decepcionado e incrédulo. Dessa vez eu não olhei para as minhas mãos, pois já sabia o que encontraria. Impedi-me de gritar, pedindo perdão, enquanto os via abraçados serem devorados pelas chamas. Não havia o que ser dito. Só havia o que ser feito.

Mesmo que eu já conhecesse o pesadelo, ele ainda me deixou transtornada. Acordei chorando em silêncio, encolhida sob os meus lençóis, tremendo de frio, embora minha roupa estivesse úmida de suor. O desespero tomou conta de mim e como uma bofetada me deu forças para me levantar.

Percorri meu quarto escuro, onde nem ao menos a luz da lua penetrava, por as persianas permanecerem cerradas, sem calçar minhas sandálias. Encontrei a porta inconscientemente e me dirigi à cozinha. Dan não estava na sala, talvez por não querer ter mais encontros noturnos comigo.

Abri a geladeira, segurando um copo de vidro. Uma idéia absurda nasceu em minha mente. E jamais uma idéia me parecera tão exata. Então num movimento desajeitado, deixei o copo cair, espatifando-se em pedaços no chão.

Segurando-me a porta da geladeira ainda aberta, olhei para o chão iluminado pela luz que saía por ela. Podia ver os cacos em diferentes tamanhos. Num movimento quase inconsciente, dei um passo e senti um dos maiores cacos penetrar minha carne. Sua ponta afiada rasgou minha região plantar e a dor que me percorreu o corpo, estimulando todos os meus centros nervosos, me fez gritar mesmo contra minha vontade.

É doentio, mas parecia quase um grito de prazer. Sentindo-me tonta, tentei me apoiar ao balcão da cozinha. No entanto, ele estava mais longe do que eu esperava, e antes que eu caísse ao chão, tendo outras partes do meu corpo perfuradas pelos cacos, senti o corpo de Dan atrás do meu, me segurando rapidamente.

__O que houve?! __Ele perguntou, ainda me segurando, com minhas costas apoiadas em seu peito infelizmente coberto com uma camiseta. O som de sua voz parecia distante, e era estranho que eu ouvisse sua voz tão baixa, embora pudesse sentir sua respiração ofegante em meu ouvido.

__Meu pé. __Ouvi-me dizer com uma voz estranhamente sonolenta. Ele imediatamente olhou para o chão. Eu fiz o mesmo, e uma vertigem quase me levou ao chão, quando vi uma enorme poça de sangue. As náuseas provocadas por aquela imagem e pioradas pela vertigem quase me fizeram vomitar. No entanto, logo senti Dan me levantar, deitada em seus braços levando-me para o sofá, após ligar a luz com um movimento que eu mal percebi.

A luz me parecia extremamente irritante. Tentei fechar meus olhos quando ele me deitou no sofá, e foi com esforço que me mantive alerta, apesar do sono que me dominava. Ainda precisava prosseguir com meu plano.

__Você tem que tentar parar de quebrar coisas. __Ele continuou falando distante, enquanto analisava o meu pé, com uma expressão preocupada. __Eu já volto. __Disse se levantando, enquanto o via tirar sua camiseta e colocá-la enrolada ao meu pé, que continuava a sangrar assustadoramente.

Ele voltou rapidamente segurando uma caixa com algumas peças de metal. Sua camiseta branca já adquiria uma coloração avermelhada. Eu o vi segurar uma pinça de metal e começar a retirar pequenos cacos de vidro encharcados de sangue e colocá-los num recipiente, uma vez que quando eu pisara no pedaço afiado do copo, ele se espatifara com a força do meu passo.

Eu não pude conter um grito de dor quando Dan derramou o volume da garrafa de álcool no meu pé. Despertando minha mente lentificada, num impulso súbito de alerta, levantei meu tronco e segurei o braço de Dan, fazendo-o me olhar preocupado.

__Calma. Eu vou cuidar disso.

Olhei então para o que ele segurava. Era uma bandeja de metal, onde pude ver uma seringa que parecia conter algum anestésico, uma agulha encurvada, na qual estava presa uma linha escura, além de um bisturi.

__Hospital. __Foi a única coisa que consegui dizer com minha voz embargada.

__Tudo bem. Não precisa ir para o hospital. Isso já aconteceu comigo inúmeras vezes, no entanto, geralmente não são cacos de vidro. Você vai precisar de alguns pontos. Eu vou aplicar anestesia. Você não vai sentir nada.

__Eu preciso ir para o hospital. __Continuei numa voz cansada, sem soltar seu braço. Tudo aquilo que eu fizera não poderia ter sido em vão. Eu teria que sair daquela casa de um jeito ou de outro, e aquele era o único que eu via. Eu me vi começar a chorar como uma criança medrosa.

__É melhor não. __Ele continuou ainda me encarando. __Eles vão fazer perguntas. Eu vou cuidar de você.

__Você quer me matar! __Tentei exclamar, mas as palavras saíram lentamente num tom baixo, em meio às minhas lágrimas. __Eu preciso... Hospital.

Ele me observou em silêncio, se desvencilhando do meu braço. Eu tentei lhe dar meu pior olhar de reprovação, no entanto, não sei se fez algum efeito, uma vez que tudo se tornou estranhamente escuro, e senti meu corpo cair deitado novamente no sofá.

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