segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Capítulo 6 - Fim (parte 2)


          Eu estou no quarto dos meus pais. Posso vê-los dormindo abraçados entre os lençóis. Eles ressonam ritmicamente calmos e despreocupados. Consigo quase ver minha mãe sorrindo segurando o braço de meu pai que rodeia sua cintura, se aconchegando em seu abraço, protegendo-se do frio.

            Eu também sorrio. A calma deles me apazigua e tudo parece perfeito. Até que percebo que não somos apenas nos três. Há alguém invadindo nosso momento familiar. Dan surge silenciosamente e encara a mesma cena que eu. Não entendo como ele pode ver tal momento de amor sem se encantar.

Dan desperta de sua distração e o vejo brincar com um objeto metálico. Ele sorri para mim enquanto derrama um líquido amarelo nas cortinas de seda do quarto e ao redor da cama dos meus pais. Ele pega novamente o objeto metálico cuja luz brilha na escuridão e o joga contra as cortinas, e não entendo o que ele está fazendo, até que sinto o calor insuportável do fogo que começa a consumir as paredes do quarto.

Eu tento alertá-los para que fujam comigo, mas percebo que não posso me mexer. Tento gritar para que Dan pare, para que não mate os meus pais, contudo ele me ignora. O pânico me invade, pois de alguma forma eu sei o que acontece depois. Luto contra a minha inércia, contudo nada acontece. E nem é mais preciso despertá-los, pois eles percebem o que começa a acontecer.

Vejo o desespero surgir nos olhos da minha mãe, que parece não poder se mover, sem reação. Meu pai levanta-se desesperado, tentando procurar uma saída ou algo que possa conter o incêndio. Ele parece perdido, pela primeira vez não sabe o que fazer numa situação de risco, mas tenta esconder seu desespero, fazendo-se de forte para consolar minha mãe que começa a gritar e a chorar. A dor que me invade não consegue me fazer reagir, e eu não sou capaz nem mesmo de gritar para libertá-la.

Meu pai a abraça, e ela se aninha em seu peito aos soluços. Ele afaga seus cabelos e sussurra algo em seu ouvido que, pelo estalar das madeiras sendo consumidas pelo fogo, não posso ouvir. Minha mãe para de gritar, mas percebo seu corpo se contorcendo em desespero contra o corpo do meu pai.

Uma roda de fogo se forma ao redor deles, e mal posso enxergá-los por entre as chamas. No entanto, encontro o olhar de meu pai que me congela o sangue, apesar do calor que me envolve. É um olhar de decepção, quase de dor. Minha mãe também me encara com um olhar de reprovação e horror. Eu não entendo. Eu não posso me mover, se eu pudesse teria os salvado, ou me juntaria a eles, atravessaria o fogo e invadiria sua cama, como sempre fazia quando criança e tinha pesadelos.

Eu tento dizer isso com o olhar, mas eles continuam horrorizados me encarando com incredulidade e desespero. Minha mãe desvia o olhar dos meus olhos, como se não suportasse mais me encarar e o desvia para as minhas mãos. Eu também olho para elas, e percebo que uma delas segura um recipiente de gasolina, agora vazio, e a outra o mesmo objeto metálico com o qual Dan brincara, e que percebo se tratar de um isqueiro.

Desesperada, tento dizer que não fora eu que fizera aquilo, mas meus pais desviam um olhar de enojamento e decepção de mim e voltam a se abraçar, numa forma de aproveitarem os seus últimos segundos de vida juntos. Eu tento em vão gritar para que eles me ouçam, que não fui eu, que não estava tentando matá-los, mas eles não me ouvem, e nem ao menos gritam quando o fogo termina de extingui-los.

Finalmente o grito de dor que me sufoca é libertado e acordo aterrorizada. Meu corpo inteiro treme involuntariamente e me abraço contra o meu peito, tentando controlar as batidas do meu coração que quase o fazem estourar.

As lágrimas jorram dos meus olhos, e não tenho força para tentar contê-las. O mundo gira ao meu redor e me sinto enjoada e enojada com a minha própria existência. Meu corpo está suado e meus pêlos eriçados, mas o frio que se instala em minha alma quase me impede de respirar.

Fecho os olhos e ainda consigo recordar a imagem cruelmente produzida pela minha mente de meus pais tendo seus corpos e suas almas consumidas pelas chamas. “Perdão!” Eu grito repetidamente numa tentativa de que eles me ouçam e me perdoem onde quer que estejam, mas isso não me acalma.

Levanto-me trêmula da minha cama, trajando ainda o meu vestido, agora suado, e desejando apenas um banho. Continuo a chorar quase involuntariamente quando abro a porta do quarto. A casa está escura, apenas a sala iluminada pela luz clara que sai da televisão.

Dan assiste a um desses programas de auto-ajuda que passam durante a madrugada, mas não parece prestar atenção à tela. Vestindo uma calça jeans abarrotada e uma camiseta de uma banda de rock, a qual desconheço, ele se distrai mudando os canais. Ele não se move, quando atravesso a sala, desistindo de ir ao banheiro, e me sento no sofá, de frente ao que ele está sentado. Os meus tremores diminuem, e paro de chorar. Eu não tenho porque temê-lo, não há nada que ele possa fazer que seja pior do que já fez.

Encaro seu rosto, como o de um espécime em amostra num museu. Ele passa por todos os canais em alta velocidade, até que joga o controle remoto em cima do centro, no qual já não há mais o vaso com flores murchas.

Eu não me assusto com seu gesto brusco, nem mesmo me movo quando encontro seu olhar entediado. Ele me encara friamente, mas não desvio o olhar, e o devolvo.

__O que você quer? Eu não gosto de conversar. __Dan fala finalmente.

__Eu quero assistir televisão. __Digo ainda tremendo.

__Ótimo. __Diz se levantando e jogando o controle remoto na altura da minha mão, eu não me mexo, então ele simplesmente bate no meu braço e se choca contra o centro novamente.

Dan parece em dúvida enquanto se encaminha ao corredor. Volta-se para mim e senta novamente no sofá, me destinando um olhar entre compreensivo e irritado.

__A culpa não é sua. Tudo bem? __Começa, procurando as palavras certas para dizer, parecendo quase condescendente. __ Você não precisa se culpar por tudo de ruim que acontecer a você.

Não são as palavras que eu esperava ouvir, e sinto as lágrimas voltarem com força aos meus olhos que ardem. Seus antebraços estão apoiados em suas coxas, e ele está inclinado em minha direção. Suas pernas alcançam o centro que, quando ele se aproxima mais, desliza em minha direção. Ele percebe que sua proximidade já é grande e volta a se apoiar no sofá, brincando novamente com o controle remoto.

Sou incapaz de me mover, e de uma maneira absurda, prefiro ficar aqui com Dan, a voltar ao quarto e meus pesadelos. Ele me passa uma sensação quase de segurança. É a única coisa que tenho, pelo menos por enquanto.

Poucas pessoas atingidas por tal tragédia devem ter tido uma oportunidade como essa. Estar a alguns passos, sem qualquer observador, do assassino das únicas pessoas que sempre amou.

Eu não sei o que essas pessoas fariam, tentariam matá-lo talvez, ou achariam um modo de entregá-lo à polícia. Todavia, por enquanto, eu apenas preciso dele para me impedir de dormir e me proteger dos meus pesadelos.

Até que ponto a culpa do que acontecera era dele? Ou mesmo minha? Dessa vez eu faria o certo. Meus pais haviam morrido. No entanto, deve haver um motivo para eu continuar viva. Talvez para evitar que Dan tirasse a vida de outras pessoas. Essa sensação me acalma e é reconfortante saber que ainda tenho uma missão.

Eu não tenho coragem de matá-lo, e não será assim que honrarei e conseguirei o perdão de meus pais. Muito menos quero me igualar a ele, tornando-me uma assassina. Eu arranjarei um jeito de fugir e dessa vez o entregarei à polícia e à justiça, como deveria ter feito antes. Contudo o tempo não volta, e eu devo fazer valer a pena o tempo que ainda me resta.

__Talvez porque seja sua. __Continuo, enxugando minhas lágrimas e encarando-o com raiva.

Ele me encara novamente, parecendo cansado e arrependido de não ter ido logo dormir. Dan parece em dúvida entre se levantar novamente e continuar onde está. Acaba se decidindo pela última, voltando seu olhar para a televisão que agora apresenta um programa com leilão de jóias.

__Você não sabe de nada. __Continua com o olhar fixo na tela.

__Eu adoraria saber. __Rebato não desviando o olhar quando seus olhos se fixam nos meus.

__Você não precisa saber. Seria demais para sua cabecinha.

__É claro que preciso saber! __Prossigo percebendo que o torpor começa a desanuviar minha mente. __Você me mantém em cativeiro há quatro dias! O que você quer de mim? Meus pais estão mortos! Foi você mesmo que fez isso. Não há ninguém para lhe pagar um resgate. Por que você me mantém presa aqui?

__Você acha que eu seqüestrei você? __Fala com sarcasmo. Seus cabelos cobrem seus olhos, porém posso sentir a raiva que eles emanam. __Você mesma acabou de dizer que não há ninguém para pagar o seu resgate. E se eu estou mantendo você presa aqui é para a sua própria segurança e para impedir que você faça alguma besteira.

__Minha segurança?! Quem pode ameaçar mais minha segurança do que você?! E qual a importância de eu estar viva?! Todos pensam que eu estou morta!

__Era isso que eu estava dizendo. __Dan continua a falar lentamente, como se fosse um grande esforço e como se explicasse a uma criança. __Você não entende.

__Mas eu quero entender! __Exclamo angustiada, no entanto Dan me ignora e volta a olhar para a televisão. Ele observa atentamente um anel de ouro branco entrançado, que me lembra o anel que Marcelo havia me dado há pouco mais de uma semana, mas que pareciam séculos. A nostalgia me invade, a lembrança da vida que eu deixara e dos planos que eu tinha. Eu não sei o que define a vida de uma pessoa. Sua simples atividade cerebral, ou o seu mundo, as pessoas ao seu redor, sua casa, sua família, seus amigos, seus sonhos e planos.

A segunda opção me é mais plausível e percebo que toda a minha vida se extinguira. E mesmo que eu ainda tenha atividade cerebral, sei que estou morta.

Olho para minha mão direita numa tentativa de relembrar a minha antiga vida, agora tão distante, e percebo com horror a ausência do meu anel:

__Cadê o meu anel?! __Grito para Dan que se vira para mim entediado.

__Que anel...

__O meu anel! __Exclamo estendendo minha mão em desespero.

__Eu precisei dele. Tanta coisa para se preocupar, e você se preocupa com um anel.

__Ele era importante...__Digo, chorando novamente, sob a perspectiva de nem ter mais uma recordação da melhor noite da minha antiga vida e do amor de Marcelo. __O meu namorado me deu na noite de formatura para nunca esquecê-lo.

__Não se preocupe. __Dan continua com um ar sério. __Ele já deve tê-lo recuperado.

__Como?!

__Assim como o seu cordão, do qual você ainda não sentiu falta, eu coloquei o anel no seu corpo, que foi enterrado no domingo.

­­___Meu corpo?!__Pergunto enquanto procuro o colar que fora da minha avó no meu pescoço, sem sucesso.

__O corpo da garota que eu matei no seu lugar.

E antes que eu possa me sentir culpada por tantas pessoas já terem morrido por minha culpa, vejo Dan se levantar abruptamente e desligar a televisão, me deixando na completa escuridão, que parece clara frente a cor que tinge o meu peito.

__Amanhã nós podemos conversar. Vê se tenta dormir. E pare de gritar meu nome enquanto dorme que eu acabo pensando que você realmente está me chamando. __Dan diz antes de fechar a porta do seu quarto, e eu agradeço que a sala esteja escura e que ele não tenha se virado para me olhar, pois teria percebido meu rosto em chamas.

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